(Tatuagens feitas pelo profissional Nicolas Rodrigues. Foto: Nicolas Rodrigues)
“Quando o Estado proibiu o eyeball tattooing, eu calei-me, porque, afinal, eu não gostava do eyeball tattooing. Quando ele proibiu os implantes sub e transdermais, eu calei-me, porque, afinal, eu não gostava de implantes sub e transdermais.
Quando ele proibiu a bifurcação da língua, eu não protestei, porque, afinal, eu não queria ter a língua bipartida. Quando proibiu a tatuagem, eu não protestei, porque, afinal, eu não era tatuado.
Quando o meu corpo foi inteiro interditado pelo Estado, não havia mais quem protestasse.”
(T. Angel hackeando textos célebres)
O PLS 350/2014 da senadora Lúcia Vânia (PSB) reacendeu a discussão sobre a legalidade e ilegalidade de técnicas variadas de modificação corporal, deixando incerto o futuro de incontáveis profissionais. A nova discussão traz dois dados significativos e que não podemos nunca deixar cair no esquecimento: o primeiro ponto é que, a despeito de todas as dificuldades, precisamos construir uma relação de união e nos reconhecer enquanto classe; o segundo ponto é que nunca e em nenhum momento estaremos completa e totalmente seguros e seguras em relação as proposições sobre o corpo que fomentamos, não podemos nos dar ao luxo de descansar e esmorecer. Veja o exemplo, técnicas como a tatuagem e o body piercing que aparentemente já estavam resolvidas, se chocam com um novo projeto de lei que tem o poder de arruína-las. Com a ascensão do fundamentalismo religioso e movimentos reacionários e conservadores no Brasil e ao redor do mundo, tudo que envolva o corpo, mais especificamente as liberdades sobre os usos do corpo, estarão em constantemente ameaça. Você pode dar de ombros e dizer que isso não te diz respeito, mas acredite, diz e não é pouco.
Não é um delírio exclusivo da senadora Lúcia Vânia abordar o assunto como ela o fez, no sentido de que a proposta esteja fora de uma realidade possível de se concretizar. Tanto é que a maior parte do tempo a consulta pública feita pelo site do Senado, vimos que a diferença entre os que são a favor e os que são contra era quase nula e que, embora hoje os contrários sejam a maioria, não podemos ignorar aqueles mais de 70 mil favoráveis a aprovação do projeto de lei suplementar. Não é delírio só da senadora, ela provavelmente encontrará respaldo de grandes corporações ligadas com a saúde, políticos e mesmo civis. Inclusive encontra reflexo em outros países que já vivem sobre esse esquema, amparados sobretudo em interesses econômicos e um longo histórico de estigma sobre técnicas, por exemplo, como a tatuagem e é sobre isto que queremos falar nas linhas abaixo.
Grace Neutral é uma tatuadora e ativista britânica que fez uma matéria bastante importante sobre a ilegalidade da tatuagem na Coréia do Sul. No vídeo (em inglês) ela conta que visitou estúdios ilegais e conversa com um dos profissionais da tatuagem. Apro Lee, um de seus entrevistados, diz que é ilegal fazer tatuagem sem uma licença médica e completa dizendo “tatuador não é uma profissão na Coréia do Sul, eu faço de modo ilegal, então eu sou um criminoso aqui”.
Em 2015, a polícia japonesa prendeu diferentes profissionais da tatuagem em Osaka e Nagoya, por estarem violando as leis de práticas médicas. Para se tatuar no país, assim como na Coréia do Sul, é preciso agora de uma licença médica, segundo decisão do governo. A medida já afetou profundamente a comunidade da tatuagem do país, a principal convenção de tatuagem que acontece em Osaka foi cancelada em abril de 2015. Em agosto do mesmo ano tatuadores passaram a ser presos e os seus estúdios fechados. Entenda, eles foram presos com a justificativa clara de que estavam sendo presos por serem tatuadores não médicos.
Brian Ashcraft que escreveu o livro Japanese Tattoo: History, culture, design conta que alguns profissionais da tatuagem que ele entrevistou e que estão em seu livro, foram pegos pela polícia, tiveram seus estúdios fechados ou tiveram que sair do país. Em matéria escrita por Brian, ele traz pontos que para nós servem como alerta, conforme traduzimos abaixo:
“Em 2001, no entanto, o Ministério da Saúde, Trabalho e Bem-Estar instituiu uma diretiva, afirmando que somente os prestadores de cuidados de saúde licenciados poderiam perfurar a pele com uma agulha e inserir tinta. Foi enviado para as autoridades em cada prefeitura para fazer valer isso. Originalmente, a diretiva não era para ir atrás de tatuadores, mas sim de quem fazia maquiagem definitiva (tatuagem cosmética), após vários incidentes e problemas que estavam acontecendo naquele momento. E isso não afetaria tatuadores até recentemente, porque algumas autoridades estão agora a aplicar a lei de práticas médicas para eles de verdade.”
Atualmente existe o movimento Saving Tattooing in Japan que busca suporte da comunidade nacional e internacional e principalmente alertar o que se passa no país. Junto com isso existe uma petição online que coleta assinaturas contra essa medida do governo, no fim da matéria você encontra o link e pode inclusive colaborar com eles.
(Foto: divulgação / Saving Tattooing in Japan)
Países como Japão, Coreias do Sul e do Norte, Turquia, Vietnã, Sri-Lanka e Irã estão recebendo uma espécie de selo de “país não amigo da tatuagem” e muito provavelmente, caso a proposta da senadora seja aprovada como está hoje, o Brasil também entre nessa lista. Queremos dizer e espero que vocês entendam que situações como as que descrevemos ao longo deste texto afetam não só as pessoas que trabalham com as respectivas técnicas, como também reforça preconceitos, alimenta segregações, fomenta estigmas e colabora com o não acolhimento de pessoas tatuadas de modo geral. Além das prisões de profissionais como mencionamos acima, há casos divulgados pela imprensa nacional e internacional de deportações de turistas por conta de suas tatuagens.
Enquanto isso no Brasil, país que amarga incontáveis problemas com a saúde pública (e mesmo a privada atualmente), precisamos assistir projetos de lei que pouco contribuem de fato com a mudança desse cenário caótico e que beira a desumanidade. Enquanto isso no Brasil a senadora Vânia Lúcia (que não está sozinha) propõe o PLS 350/2014, sem diálogo algum com profissionais da tatuagem e body piercing e demais áreas afetadas, que não são poucas. Enquanto isso no Brasil a consulta pública segue buscando saber sua opinião. Clique no link abaixo e vote:
https://www12.senado.leg.br/ecidadania/visualizacaomateria?id=119167
Os principais estúdios e clínicas de tatuagem e piercing no Brasil já se manifestam contra a aprovação do PLS 350/2014. Profissionais, pesquisadores, entusiastas e a sociedade civil têm também se mostrados indignados com a possibilidade da aprovação. Seguiremos trazendo aqui no FRRRKguys reflexões e notícias sobre o impacto da respectiva proposta e todos os seus desdobramentos. Seguimos sem trégua!
REFERÊNCIAS
Save tattooing in Japan
https://www.facebook.com/savetattooingiverenglish
Secure the development of Japanese tattoo culture by establishing a licensing system. https://www.change.org/p/secure-the-development-of-japanese-tattoo-culture-by-establishing-a-licensing-system
Japan is trying to destroy tattoo
http://kotaku.com/japan-is-trying-to-destroy-tattoos-update-1747046619
Tatuados devem tomar cuidado ao viajar
http://www.oestadorj.com.br/mundo/tatuados-devem-tomar-cuidado-ao-viajar/
Países inimigos da tatuagem
http://www.mundodastatuagens.com.br/blog/2015/07/paises-inimigos-da-tatuagem/
Com toda a divulgação dos que estão envolvidos com o ramo da tatuagem e body piercing, assinei contra o PLS 350/2014, que supostamente pretende restringir essas atividades a profissionais da Medicina. E estava – como todos – sem entender por que seria do interesse de alguns levar adiante tal iniciativa.
Até que resolvi de fato ler o tal Projeto de Lei.
(você também pode baixá-lo para ler no link)
Em nenhum momento, em nenhum parágrafo se evidencia que a dermopigmentação artística (o nome “sério” da tattoo) passará a ser atividade médica, apesar de mencionar a “invasão da epiderme e derme com o uso de produtos químicos ou abrasivos” – procedimentos que existem também na área de saúde, sendo a sutura um exemplo básico.
O projeto prevê regulamentar atividades que JÁ SÃO do ramo médico, que envolvem diagnósticos para tratamento, e que ao longo do tempo acabaram sendo executadas por outros profissionais. Isso está bem claro no texto. É uma questão das atividades ligadas à SAÚDE, e não à prática artística. Esse detalhe aparentemente pequeno já define que nada do que está escrito ali se refere à tatuagem ou ao body piercing, que são procedimentos artísticos. Que são também diferentes dos procedimentos estéticos (cirurgias plásticas, corretivas, eliminação de vasos capilares etc), esses sim dentro do âmbito de atuação médica.
Aproveitando o comentário do Marcio Malta em outro site, ele diz correntamente seguinte: “Materia tendenciosa. Sugiro que TODOS leiam o projeto de lei na íntegra. Lá diz assim: Parágrafo único. O médico desenvolverá suas ações profissionais no campo da atenção à saúde para: I – a promoção, a proteção e a recuperação da saúde; II – a prevenção, o diagnóstico e o tratamento das doenças; III – a reabilitação dos enfermos e portadores de deficiências. Logo, como tatuagem não é doença, e não sei encaixa das ações do médico, os tatuadores estão fora do âmbito desse projeto, ficando livres para exercer suas atividades. Como são e sempre serão!”
Independentemente de onde tenha começado a confusão, sempre é tempo para se esclarecer que o telefone sem fio das informações nas redes sociais muitas vezes gera perturbações e ações desnecessárias, se não forem ainda contraproducentes e enganosas.