Mórbido Silêncio

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Mórbido silêncio (EUA, 1998) é um filme de horror escrito e produzido por Dee Snider, conhecido pela banda Twisted Sister, e dirigido por John Pieplow. Além de escrever e dirigir, Snider também assumiu o papel principal do longa, encarnando o psicopata Carletons Hendricks aka. Capitão Howdy.

Uma prequel em quadrinhos chegou a ser publicada pela Fangoria Studios antes de ser fechada, saindo assim só a primeira edição da revista. Por conta disto, posteriormente o quadrinho acabou sendo publicado completo pela The Scream Factory. A revista foi escrita por Jesse Blaze Snider (filho do Dee Snider) e desenhada por Stephen Mooney (escritor e artista de comics da Irlanda). Há além da prequel e do filme alguns rumores sobre uma possível sequência do longa, mas nada concreto.

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Para muitas pessoas a trilha sonora de Mórbido Silêncio merece destaque, com a presença de algumas bandas clássicas (Anthrax, Megadeth, Pantera e do próprio Twisted Sister) e outras bandas do recém surgido new metal, a exemplo de Coal Chamber e System of a Down. Ao que parece, o filme agrada os fãs do gênero.

Este foi um dos primeiros filmes que eu vi que abordava as práticas da modificação do corpo e alguns rituais. Body piercing, surfaces, tatuagens, dentes serrados, cicatrizes e passando também pela suspensão corporal, lip sewing e kavadi. Essa primeira vez com o filme foi no tempo em que a internet ainda era escassa e é importante destacar isso, pois Dee Snider escreveu justamente sobre as mudanças sociais e tecnológicas que marcaram a década de 90, através inclusive, da internet.
Naquele momento não fiz profundas reflexões sobre o conteúdo e adorei o filme, principalmente pelas modificações corporais que ali eram apresentadas no maior clima horror movie, gênero de filme que particularmente me agrada. Não havia internet e igualmente não haviam muitos espaços que falassem das modificações corporais como temos hoje, principalmente no ambiente virtual. Com isso quero dizer que qualquer material – fosse bom ou ruim – era devorado por mim. A indigestão viria nos anos a seguir.

Quando passei a estudar mais as modificações corporais – e o corpo de modo geral – e consequentemente fui montando um repertório, criando uma bagagem, fui percebendo que o filme tinha vários problemas sérios. Principalmente quando levamos em consideração que o discurso vencedor e de senso comum afirma exatamente o que o filme sugere e relaciona: modificação corporal e transtorno mental. Para quem acha que exagero, como já escrevemos AQUI, o chefe do departamento de dermatologia da USP, Dr. Luiz Carlos Cucé, em matéria do SBT fala que as pessoas que se submetem a suspensão “têm graves desvios mentais”. Concluindo que no geral que quem ganharia com isso, ou seja, com a suspensão, seriam os psiquiatras. Segundo Cucé, quem faz suspensão é um psicopata.

Dando continuidade na análise, no caso de Mórbido Silêncio a gente vê um psicopata, fanático, suicida que se utiliza de procedimentos da body modification para torturar as pessoas e usa em si próprio para encontrar a morte.

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Além dessa repetição de estigma – que inclusive vai ser perpetuado por outros filmes do gênero nos anos a seguir, a exemplo de American Mary (2012) que já escrevemos por AQUI, existe o problema de fundamentação teórica (quiçá antropológica) quando Capt. Howdy fala sobre body art e o que se mostra são procedimentos apenas de body modification. Talvez nem seja correto afirmar que sejam procedimentos da body modification, uma vez que a intenção dele – na condição de psicopata –  é apenas a de torturar suas vítimas. Importante frisar que no recorte ao qual o nosso site se direciona, a tortura física não deve ser considerada como modificação corporal. Assim como a alteração do corpo de uma pessoa sem o seu consentimento não deve ser compreendida da mesma maneira que o nosso recorte. Os campos de concentração nazista já deveriam ter nos ensinado isso, mas não nos importamos em reforçar.

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Se de um lado consideramos o filme como uma contribuição bastante negativa sobre a visibilidade das modificações corporais e das “pessoas modificadas”, por outro ele traz uma fagulha de provocação e, que em nossa modesta opinião, é responsável em salvar o filme. O Mórbido Silêncio levanta uma discussão muito importante e bastante atual dessa nova ordem mundial ou pensando apenas no Brasil, nessa lógica bárbara do “está com dó, leva para casa”, que muito me faz pensar no texto A história do ódio no Brasil de Fred Di Giacomo que você pode ler CLICANDO AQUI.

“Em 30 anos, tivemos um crescimento de cerca de 502% na taxa de homicídios no Brasil. Só em 2012 os homicídios cresceram 8%. A maior parte dos comentários raivosos que se lê e se ouve prega que para resolver esse problema devemos empregar mais violência. Se você não concorda “deve adotar um bandido”. Não existe a possibilidade de ser contra o bandido e contra a violência ao mesmo tempo.”

Carlton Hendricks Innocent(Carleton Hendricks após o tratamento)

Carleton Hendricks após ser capturado pela polícia é preso e diagnosticado como insano, assim, acaba passando por um tratamento de recuperação. Após alguns anos internado recebe alta do hospital e retorna para a sua casa.

6655659129_d4b8e5498b_z(Capt. Howdy sendo capturado)

A imprensa local atua como isqueiro e faz os seus julgamentos seletivos e qualquer semelhança com a realidade talvez não seja mera coincidência. Não nos esqueçamos de Rachel Sheherazade e de tantas pessoas do jornalismo, que como ela, rondam fantasmagoricamente os jornais do mundo. A comunidade também se mobiliza nesse sentido e podemos ver a mulher cristã amaldiçoando Hendricks em nome de Deus, assim como o pai (interpretado por Robert Englund, o Freddy Krueger) – que sem hesitação chama a esposa e a filha de vagabundas – se articulando para proteger a família.

tumblr_leloj83A0r1qf2lovo1_500(personagem de Robert Englund)

O desenrolar da estória apresenta os homens de bem se organizando para torturar e assassinar o Capt. Howdy. Enquanto Hendricks é sequestrado e espancado pelos “homens de bem”, o detetive assiste tudo de longe e opta pela omissão. Seria esse o silêncio mórbido que a tradução do título do longa sugere? Provavelmente não, mas é irônico. Impossível assistir essa sequência e não nos remetermos ao nosso tempo e ao conceito da banalidade do mal de Hannah Arendt (1906-1975).
Hendricks não morre e retorna como Capt. Howdy para se vingar daqueles que o agrediram, um clichê dos filmes de horror que se repete aqui também. O psicopata se encontra novamente com o detetive e um dos diálogos merece ser destacado, justamente quando o capitão questiona qual justiça seria feita pra ele, isto é, aquela que o inocentou reconhecendo sua insanidade “ou a lei da justiça com as próprias mãos?” O questionamento é pertinente e deveria fazer pensar sobre vingança e justiça, que são duas coisas completamente distintas. Ao que parece, pelo desfeche da estória, o detetive, assim como a “dócil” população de Helverton, estava mais interessado em vingança, nos moldes do Código de Hamurabi e nisso, carxs leitorxs, o filme se aproxima muito mais de nós do que podemos imaginar. A violência nos é trivial e no final quase sempre dizemos “vou ver a minha família”, assim como o detetive Mike o fez.

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Mórbido Silêncio deixa a desejar no que se refere ao uso das práticas da modificação corporal, mas ainda é relevante para nos fazer pensar sobre a natureza humana.

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