Para repensar as perfurações nas orelhas das crianças

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Faz bastante tempo que queríamos escrever sobre as perfurações nas orelhas das crianças, no entanto, optamos em esperar para podermos analisar e estudar o comportamento dessa prática na comunidade da modificação do corpo. Que é naturalizada e socialmente aceita, ainda que seja uma construção social. Acompanhamos o posicionamento de diversos perfuradores corporais profissionais ao redor do mundo, assistimos inclusive, muitos exibindo orgulhosos em seus portfólios orelhas perfuradas de crianças recém nascidas.

De modo geral, a prática divide opiniões e percebemos que mais da metade dos profissionais perfuram as orelhas de crianças, ainda que elas não possam consentir se querem ou não. São poucos os profissionais que se manifestam abertamente contrários à prática, alguns, estão compartilhando a imagem abaixo que colocam uma criança sendo tatuada de um lado e de outro uma sendo perfurada.

12105911_1509418779369483_4339967393828283192_n(O texto diz “Qual a diferença? Essa imagem te faz ficar bravo? Então, porque essa não?”)

Em São Paulo desde 1997 a lei de número 9.828 – conhecida como lei Campos Machado – proíbe a colocação de adornos, tais quais body piercing e tatuagem, em menores de idade, exceto brincos nos lóbulos das orelhas. Ora, curiosamente o projeto de lei não faz nenhuma menção às questões essenciais tais quais autonomia e consentimento, ambas serão desenvolvidas no decorrer do texto. Irônico, mas a lei Campos Machado proíbe quem já tem capacidade de escolha e pode consentir em ter o seu corpo perfurado, mas legitima que os corpos que não podem ainda consentir sejam perfurados.

 

Lei nº 9.828 de 06 de Novembro de 1997

Artigo 1º  – Os estabelecimentos comerciais, profissionais liberais, ou qualquer pessoa que aplique tatuagens permanentes em outrem, ou a colocação de adornos, tais como brincos, argolas, alfinetes, que perfurem a pele ou membro do corpo humano, ainda que a título não oneroso, ficam proibidos de realizarem tal procedimento em menores de idade, assim considerados nos termos da legislação em vigor.

Parágrafo único – Excetua -se do disposto neste artigo a colocação de brincos nos lóbulos das orelhas.

Furar-orelhas(Tradução: Isto é abuso infantil)

Primeiro e antes de qualquer outro aprofundamento, fazemos questão de deixar claro que o FRRRKguys é pontualmente contra as perfurações corporais em crianças recém nascidas ou aquelas que não têm idade e capacidade de consentirem se querem ou não seus corpos perfurados. Para nossa alegria, não estamos sozinhos em solo nacional e sabemos que essa é uma discussão que está acontecendo ao redor do mundo. O The Guardian anunciou em junho que os ministros da Inglaterra consideram que a prática deveria ser proibida, isto é, os pais não poderiam mais furar as orelhas das crianças, levando em consideração que elas não podem consentir com o procedimento. Considerando que seja um procedimento de abuso e crueldade com as crianças, uma petição também na Inglaterra arrecada assinaturas para que a prática seja proibida, dizendo que a prática é cruel e visa atender a vaidade dos pais. No momento em que escrevemos essa matéria, mais de 46.000 pessoas já assinaram a petição.

Você pode clicar no link abaixo para verificar:
https://you.38degrees.org.uk/petitions/ban-ear-piercing-for-babies-toddlers

No mesmo artigo do The Guardian, conta-se que em Julho de 2013 a Public Health England (PHE) em parceria com a Tattoo and Piercing Industry Union publicaram um guia, deixando claro que não existe idade mínima para se fazer uma perfuração, desde que os pais possam consentir sobre as perfurações dos menores. Repetimos, para tornar mais claro, que é preciso que os pais entendam e que os profissionais que trabalham com perfuração corporal entendam que a pessoa que vai ter o corpo perfurado é quem precisa consentir com o procedimento.
Sem consentimento , sem procedimento, simples assim.

Perfurar a orelha de crianças é prática cissexista

“Em algum momento fui a criança que Frigide Barjot se orgulha de proteger. E me revolto hoje em nome das crianças que esses discursos falaciosos esperam preservar. Quem defende o direito das crianças diferentes? Os direitos do menino que adora se vestir de rosa? Da menina que sonha em se casar com a sua melhor amiga? Os direitos da criança queer, bicha, sapatão, transexual ou transgênero? Quem defende o direito da criança a mudar de gênero, se for da vontade dela? Os direitos das crianças à livre autodeterminação de gênero e de sexualidade? Quem defende os direitos da criança a crescer num mundo sem violência sexual ou de gênero?”
Paul Preciado, Quem defende o direito da criança queer?

No texto ‘Brincos para quem? da Revista Capitolina, temos uma clara noção do cissexismo que ronda a prática da perfuração da orelha das crianças. Em nossa sociedade que é heteronormativa e cissexista, espera-se que uma criança seja o menino ou a menina e só, todas as demais identidade são a priori negadas. Assim sendo, como diz no começo do texto da Capitolina, “espera-se que meninos tenham um tipo de comportamento e que meninas tenham outro tipo de comportamento. Também é esperado que sigamos certos códigos de vestimenta, e todas estas expectativas que o mundo despeja sobre nós começam antes mesmo do dia em que nascemos.”

Nesse sistema violento a regra é clara, para as meninas o rosa, para os meninos o azul. Esse discurso é alimentado por grandes corporações e instituições, tais quais a escola, a igreja e a família. Para que fique claro que uma menina seja de fato uma menina, furam-se logo as suas orelhas. Ela precisa desde cedo estar bonita e enfeitada, em outras palavras objetificada, as pessoas dizem. O discurso é muitas vezes disfarçado de estética, todavia o que fica claro é que desde cedo é preciso mostrar ao outro a normatividade do gênero da criança, por mais que ela ainda não tenha capacidade de dizer sobre si. Sua fala é silenciada antes mesmo de ser aprendida.

Curioso é que a maioria das pessoas que abertamente defendem que possam ser perfuradas as orelhas das crianças – exclusivamente – para atender a identidade de gênero feminina, se posicionariam contrárias ou estranhariam se o pedido fosse para perfurar as orelhas de uma criança para atender a identidade de gênero masculina. Furar a orelha dos meninos é impensável – imagine um menino parecer uma menina, as pessoas dizem; imagine um menino parecer um gay, as pessoas dizem – e os casos que ouvimos em que as mães o tentaram, foram fortemente hostilizadas pela família e a maioria abandonam a ideia antes de concretizá-la. Tanto em um caso quanto no outro, consideramos como abuso de incapaz.  Para pensarmos as relações familiares, citamos como muito bem colocou no texto ‘Quem defende a criança queer?‘, o filósofo Preciado ao dizer que:

“O que o meu pai e minha mãe protegiam não eram os meus direitos de criança, mas as normas sexuais e de gênero que dolorosamente eles mesmos tinham internalizado, através de um sistema educativo e social que castigava todas as formas de dissidência com a ameaça, a intimidação, o castigo, e a morte. Eu tinha um pai e uma mãe, mas nenhum dos dois pôde proteger o meu direito à livre autodeterminação de gênero e de sexualidade.”

Para concluir, é preciso ter em mente que quando uma criança nasce não sabemos se ela será transgênero ou cisgênero ou sem gênero ou o quer que seja. Tão pouco se será heterossexual, bissexual, homossexual, assexual ou pansexual. Quando perfuramos sua orelha para demarcar que aquele corpo que nasceu, por exemplo, com vagina seja feminino e heterossexual, estamos ferindo o consentimento de uma pessoa, colonizando e definindo o seu gênero e sexualidade, que será construindo apenas por ela no porvir. Nós não temos esse direito. É preciso deixar essa vaidade e prerrogativa heteronormativa de lado.

Perfurar a orelha de crianças: autonomia e consentimento

“Ninguém é sujeito da autonomia de ninguém. Por outro lado ninguém amadurece de repente, aos vinte e cinco anos. A gente vai amadurecendo todo dia, ou não. A autonomia, enquanto amadurecimento do ser para si, é processo, é vir a ser.”
Paulo Freire, Pedagogia da Autonomia

 

Autonomia é um termo de origem grega cujo significado está relacionado com independência, liberdade ou autossuficiência. Na Filosofia a autonomia é um conceito que determina a liberdade de indivíduo em gerir livremente a sua vida, efetuando racionalmente as suas próprias escolhas. No texto tentamos mostrar que quando uma pessoa tem a capacidade de colocar em prática sua autonomia, o que inclui escolher as formas de seu corpo, ela é controlada, vigiada e punida, principalmente quando as escolhas não estão de acordo com as normas e padrões vigentes. Por outro lado, a mesma autonomia é negada quando se trata de mães, pais e responsáveis interferirem nos corpos das crianças, quando estas ainda não possuem o poder de decidir e escolher. Isso nos parece errado e problemático e só nos mostra o quanto a autonomia sobre os corpos vem sendo historicamente e abusivamente negada.

Perfurar as orelhas de crianças que não podem ainda decidir sobre si é uma prática violenta sim e que ignora a questão básica do consentimento. Os exemplos que temos na História em que os corpos foram perfurados, cortados ou queimados sem consentimento são alertas importantes. As tatuagens feitas nos campos de concentração nazistas e que a professora Célia Maria Antonacci Ramos discutiu em seu livro ‘As Nazi tatuagens‘ é um exemplo. A mutilação genital feminina que acontece ainda hoje na África é outro exemplo. As marcas feitas com ferro quente nos escravos africanos também é um exemplo cruel da manipulação do corpo não consensual. Todas essas práticas violentas e não consensuais mostram e falam sobre o poder que uma pessoa ou determinada cultura exerce sobre outras. Todas essas práticas foram e algumas ainda são (como a mutilação genital) legais, isto é, legitimadas pelo Estado como tradição. Pensar sobre isso deveria ser um exercício diário.

Convidamos todas as pessoas profissionais do piercing e, principalmente aos pais e mães, que pensem bastante sobre essa questão. Entendam, que quem precisa tomar essa decisão não são vocês e não importa o que as revistas dizem se é seguro ou não, se é bonito ou não… Não importa se o Estado diz que é legal. Não importa se é cultural e tradição, ainda assim é errado. Sem consentimento nenhuma modificação corporal é bonita, é apenas um gesto de poder, autoritarismo e dominação. Talvez não seja essa a relação que a maioria de vocês queiram ter com as pessoas que amam. Pensem.

REFERÊNCIAS

Brincos para quem?
http://www.revistacapitolina.com.br/brincos-pra-quem/

Ban ear piercing for babies/toddlers
https://you.38degrees.org.uk/petitions/ban-ear-piercing-for-babies-toddlers

Thousands sign petition calling for ban on children’s ear piercings
http://www.theguardian.com/society/2015/jun/10/thousands-sign-petition-calling-for-ban-on-childrens-ear-piercings

Furou a orelha do seu bebê? Você o violentou.
http://vilamamifera.com/dadada/furou-a-orelha-do-seu-bebe-voce-o-violentou/

PHE supports new tattooing and body piercing guidance.
https://www.gov.uk/government/news/phe-supports-new-tattooing-and-body-piercing-guidance

 

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