Reflexões sobre concurso de tatuagem e categoria específica para mulheres

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Dentro de festivais e convenções de tatuagem que acontecem ao redor do país existem concursos de tatuagem. Dentro dos concursos – que se tornaram muito populares desde quando as primeiras convenções de tatuagem começaram a ser realizadas no Brasil na década de 90 -, existem categorias para que cada profissional participe de acordo com o estilo que melhor se desempenha. A ideia, repetindo, é que cada profissional participe na categoria que melhor domina e isso deveria acontecer independentemente de seu gênero, guardem essa informação.

Durante os dias em que o festival e/ou a convenção acontecem, jurados e juradas – usualmente profissionais com anos de experiência e/ou que se destacaram por seus trabalhos – analisam inúmeras tatuagens e votam na qual merece ser premiada. No caso, o ou a profissional que realizou a tatuagem é quem ganha o prêmio e o crédito levando em consideração sua técnica e criatividade. Novamente: independente do seu gênero.

A maioria dos eventos seguem quase a mesma configuração em relação as categorias que são avaliadas, algumas delas, por exemplo, são: old school, realismo, oriental, pontilhismo, new school e etc. Poucos eventos inovam inserindo, por exemplo, tatuagem em pele negra, discussão ainda bastante abafada na indústria e que tem rendido algumas reflexões aqui no FRRRKguys e, obviamente, em outros espaços.

Quando nos voltamos para a história da tatuagem do Brasil, percebemos que é um movimento construído principalmente por homens brancos, cisgêneros e heterossexuais. Nesse momento não podemos deixar de olhar para a história das mulheres e toda opressão secular que a acompanha. Nesse momento, também não podemos deixar de olhar para essa história da tatuagem fazendo uma intersecção entre gênero, classe, raça, capacitismo, geração e sexualidade. É um exercício para perceber quem está dentro, quem está fora e quem ainda estando dentro segue permanecendo fora. Urgente e necessário.

No começo da década de 90 quando as convenções de tatuagem começam no Brasil, a presença de profissionais da tatuagem mulheres era bastante pequena e nem por isso deixava de ser gigante, quando fazemos o exercício de olhar para a história macro das mulheres. Por pequena, queremos dizer uma ou duas ou três, com destaque para pioneira Hosanir Finotelli conhecida como Medusa, que vive no Distrito Federal e carrega seus 40 anos de profissão. Repetindo, uma mulher com mais de 40 anos de profissão no campo da tatuagem.

Hoje a presença de mulheres na indústria da tatuagem é grande e segue crescente. Ainda assim, algumas estruturas sexistas machistas e patriarcais seguem firmes, manifestas na objetificação do corpo da mulher, no alto índice de assédio, abuso sexual e outras violências e com a ideia de que as mulheres precisam obrigatoriamente agradar (aos homens), serem doces, delicadas e cuidadoras. Manifestas também com a segregação das mulheres nos concursos de tatuagem e, pior, não apenas, ignorando o que elas estão dizendo como suas reivindicações genuínas.

A pergunta que abrimos para reflexão coletiva é como essas mulheres trabalhadoras e profissionais da tatuagem se sentem, em pleno 2020, ao saber que existem festivais e convenções de tatuagem com concursos de tatuagem específicos para mulheres? O que essa criação de categoria significa e suscita? O que ela representa e no que ela implica? Para responder essas questões, conversamos com diferentes mulheres profissionais da tatuagem do Brasil, que nos ajudam a pensar de modo mais crítico e abrangente sobre tudo isso.

As respostas delas não são brandas e nem esperaríamos que fossem. A maioria das respostas encontram eco com a história macro das mulheres, no sentido da opressão, do apagamento e do silenciamento. Algumas respostas são doloridas, por exemplo a que trata de uma possível insegurança das mulheres em colocar os seus trabalhos para competir nos concursos, porque elas não se consideram boas o suficiente. Ou a que diz sobre a manutenção e o fomento da competição e rivalização entre mulheres. Ou ainda, aquela que fala dos equívocos do patriarcado e sexismo machista precisarem ser lidos como um presente divido, que como tal não pode ser questionado.

A ideia da boa intenção desprovida de uma premissa embasada e bem fundamentada para tratar de determinados assuntos está fadada ao descrédito. Se a intenção for realmente boa, por favor entenda: é preciso escutar e mais do que isso, se preparar verdadeiramente para falar ou tratar dos temas que se pretende. Principalmente quando envolvem grupos de pessoas – como as mulheres – que historicamente sofreram opressão e negação dos direitos humanos básicos.

Leia abaixo as respostas que recebemos dessas trabalhadoras da tatuagem profissional no Brasil. Que essas respostas nos tirem – enquanto comunidade – da apatia, da indiferença e do conforto. No mais, tatue como uma garota!

“A maioria das convenções são feitas por homens, até onde eu sei. Uma ou outra que as minas estão fazendo os corres… Mas o que acontece é que eu acho que os caras estão muito acostumados e eles não conseguem ver como certas atitudes são machistas e fortalecem essa coisa toda das mulheres estarem sempre competindo. Pra eles é um lugar de conforto e não conseguem enxergar o quanto isso é ruim para um todo, independente do gênero. Essa coisa da competição e colocar só mulheres para competir, colocar a gente para competir entre si… Então, como a maioria das convenções são feitas por homens, eles não pedem, não dão abertura, não perguntam para as mulheres o que elas acham, se isso é agressivo ou não, se isso é legal ou não, acaba acontecendo dessa forma… Os caras não trocam ideia, não estão tão enfronhados de certos assuntos porque eles se sentem agredidos ao invés de se sentirem acolhidos. Porque o machismo é uma coisa que não agride só a mulher. É uma coisa que agride aos homens também, em vários sentidos, mas eles ainda não abriram os olhos e não reconheceram, muitos deles não reconheceram isso. E aí é palha pra caramba, colocar mulheres para competir, sei lá, como essa categoria que citei, “a melhor tatuadora sei lá”, não valoriza o trabalho e só coloca a gente pra competir e criar rixas.”

Téssia Araújo, tatuadora de Brasília.

“A gente precisa ver qual é a visão do evento. Eu acabei de voltar de um evento e é nítido que existem 300 vezes mais homens que colocam trabalhos para competir porque as meninas não se sentem seguras de colocar. A não ser quando as meninas são muito, muito boas e sabem isso claramente. Se for no sentido de, vamos dizer assim, de aumentar que as meninas, incentivar que as meninas participem do evento, eu sou a favor. Porque realmente as mulheres não colocam o trabalho. Agora se for um fato de segregação, separação, de não colocar as meninas ou de taxá-las de alguma forma, aí eu acho bem escroto. Mas eu acho que de repente seria interessante a gente tentar ir a fundo, sabe, pra descobrir qual é o sentido disso. Se eles imaginam de uma forma idiota ou se eles querem realmente que as meninas participem mais e não se escondam.”

Aline Torchia, jurada e tatuadora de São Paulo.

“A mais de 10 anos atrás foi organizado uma convenção de tatuagem com a categoria de melhor tatuadora, lembrando que esse tipo de categoria não separa os estilos de tatuagem, e julgam por exemplo um new school com um realismo na mesma categoria, só porque ambos foram feitos por uma mulher. Na época algumas mulheres não percebiam que o evento não estava apoiando as tatuadoras, e sim desmerecendo nossa capacidade de tatuar e competir com os homens, de igual pra igual. Algumas tatuadoras não aceitaram a separação e tatuaram no evento colocando seus trabalhos nas categorias por estilo, junto com os homens (muitas ganharam). Com essa iniciativa outras começaram a ver a situação de outra forma e deixaram de competir na categoria “melhor tatuadora” , que no ano posterior foi anulada. Caso encerrado? Infelizmente não.
Em 2017 uma convenção em Taubaté lançou novamente a categoria, dessa vez com o nome “Bela Tatuadora” ao divulgar a categoria eles diziam que o intuito era “incentivar as mulheres a competir mais nas convenções de tatuagem”, colocando todas pra competir numa categoria sem critério algum. Na época nos unimos em um grupo com 350 tatuadoras e discutimos o assunto e lançamos uma nota coletiva em resposta, explicando que essa categoria nos era ofensiva e que temos nossos próprios motivos para não competir em convenções de tatuagem e se quisermos competir compramos um stand e competimos de igual pra igual e não precisamos de uma categoria misógina disfarçada de incentivo para nos “estimular” a participar desse modelo de convenção onde só a competitividade é estimulada, pra provar quem é o melhor, em troca de um troféu?! Que muitas vezes foi comprado ou dado de presente pelo amiguinho jurado. Ver isso acontecendo novamente em 2020 me frustra, porque já discutimos e nos manifestamos sobre isso muitas vezes anos atrás e vocês continuam não nos escutando! Qualidade da arte não é o gênero que faz! Impulsionamos nossos trabalhos e ganhamos destaque porque somos boas, nós existimos e já temos nosso espaço. E não precisamos de “cota de mulheres” em convenção de tatuagem. Nos escutem, nos respeitem e nos deem voz.”

Karine Guimarães, tatuadora de São Paulo.

“A primeira vez que eu vi uma categoria feminina em uma convenção foi há quatro anos e nem precisei pensar muito pra perceber que aquilo não tinha cabimento. Chamaram as três tatuadoras no palco para que os jurados, homens, decidissem qual delas levaria o prêmio, já que essa categoria era exclusiva para mulheres. Eu observava aquilo esperando uma reviravolta, mas me surpreendi com o desfecho: a vencedora comemorava a vitória sobre duas concorrentes, as quais a única coisa em comum no trabalho julgado era ter sido realizado por uma mulher. Nessa época, senti um incômodo dentro de mim, comentei com meu companheiro que aquilo não fazia sentido, mas logo deixei pra lá. Pensei ser um acontecimento isolado que “não foi por mal”. Pois bem, neste ano de 2020, após alguns anos sem convenções de tatuagem na minha cidade, surge um evento com outro nome e outra cara, o qual despertou o interesse de várias tatuadoras em adquirir um stand e entrar para a competição. Tatuadoras essas que são
relativamente novas na área e, se comparadas com as velhas figurinhas carimbadas masculinas, estão muito mais evoluídas em questão de técnica com o mesmo tempo de carreira. Tudo corria bem, vi mulheres que nunca tinham participado de uma convenção se empolgando e fechando o stand com os organizadores, inclusive eu estava prestes a participar, afinal estamos cheias de gás, começando a alçar voos mais altos na nossa caminhada e com sede de estar nesse ambiente onde nosso trabalho possa ser visto e reconhecido assim como o dos caras. Então veio o balde de água fria. Divulgaram na página do Instagram as categorias a serem julgadas no evento e fiquei surpresa com a categoria feminina, exclusiva para
tatuadoras, com estilo livre. Obviamente uma categoria como essa não poderia ter um julgamento justo, além de não incentivar as mulheres a participar. Qual seria o critério para avaliar um trabalho de Blackwork ao lado de um Full Collor? Como levar em consideração criatividade e técnica em uma categoria onde diversos estilos cada um com a sua particularidade estão reunidos? Por exemplo, um trabalho de realismo colorido bem executado ganharia de um Dotwork a nível técnico, já que o Realismo envolve mais a reprodução fiel e o Dotwork dá mais liberdade para criar. Tatuadoras com mais experiência e técnica não participariam, cada uma escolheria pela categoria que contempla o estilo onde se desenvolveram mais. Claro que participar não é obrigatório, mas já basta a falta de espaço
nesses eventos e uma categoria dessas que é praticamente uma ofensa.
Questionei ali mesmo a organização em que ano estamos, porque parecia que eu estava louca e as respostas que eu recebi deles foram incríveis de absurdas. Primeiro me disseram que participar da categoria era uma opção e quando questionei se acreditavam que a categoria era uma estimulo às participantes, responderam que sim e que era uma questão de ponto de vista de cada um. Sendo assim, quis saber como essa segregação ridícula poderia levantar a nossa moral e a partir daí eu não precisava mais perder o meu tempo, porque não existiam mais argumentos, começaram a me tratar como se eu não tivesse entendido, como se eu estivesse atrapalhando o trabalho deles fazendo tal questionamento, causando intriga. Finalizaram dizendo que essas eram as regras, se eu não gostasse não precisava participar e que o mundo está muito chato, porque eu estava vendo um problema onde na verdade não existia problema nenhum. Após alguns minutos apagaram todos os comentários, os deles e os meus e bloquearam essa função, abafando o acontecido. Eu decidi tornar isso público porque estou cansada de ter que pedir licença pra macho. Ser homem é essa delícia toda, você não precisa ter um argumento concreto, é só se passar por benfeitor e mesmo que esteja fazendo uma merda, silenciar uma mulher é muito fácil, desmoralizando os argumentos dela. É só chamar de chata, de louca, falar que não entendeu. Sabe quando as coisas começam a fazer sentido? Eu devo estar louca mesmo, porque esses homens maravilhosos fizeram uma categoria exclusiva pra mim, pra que eu competisse com outra mulher e não existe um critério técnico que faça sentido do ponto de vista da tatuagem, o estilo é livre! Aí, quando eu contei pra algumas pessoas, algumas sentiram pena dos organizadores, já que eles não fizeram isso por mal. Eu não sinto um pingo de pena, sinto raiva porque na minha vida já estou cansada de ter que ser contida nesse tipo de situação, onde dizem que estão me beneficiando, mas a minha voz não tem valor. Eu ainda tenho que aceitar esse presente divino que é ter uma categoria exclusiva em uma convenção sem falar nada, caso contrário estou sendo extremamente inconveniente. Parece piada, quem dera se fosse. Não acredito que em algum dia da minha vida eu vá ver esses homens abaixando a bola e nem espero que eles façam o que já deviam estar fazendo há muito tempo, que é incluir juradas no meio desses senhores ultrapassados que tem complexo de grandeza. O caminho é outro, é tomar o nosso lugar de mulher e não esperar ser chamada pra fazer parte dele, é perder o medo de ser rude porque os homens tem licença pra isso o tempo todo e é assim que eles pretendem continuar nesse mundo. Nós, mulheres, merecemos respeito e reconhecimento, afinal não somos minoria. Em pouquíssimo tempo somos incontáveis tatuadoras, nós não estamos apenas “colando cada vez mais no rolê”, ele já é nosso, doa em quem doer.”

Alessandra Favoritto, tatuadora de Goiás.
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