(Foto: reprodução / Estadão)
Este texto não tem a intenção de ser algo pronto e fechado, mas busca refletir sobre questões importantíssimas para a construção de um mundo acessível e menos violento para todas as pessoas. Escrever sobre gênero e sexualidade sempre nos provoca um certo temor, justamente porque não queremos ofender ou soar como quem deslegitima experiências e formas de se colocar no mundo. Desta forma, gostaríamos profundamente que este texto fosse lido como um diálogo aberto, uma conversa de pessoas que buscam entender assuntos que nos são caros e que necessita de interlocução. Isto não é pura e simplesmente uma mea culpa. Escrever sem temer é preciso.
O que é ser homem? O que é ser mulher? O que é ser trans*? O que é ser travesti? O que é não ter gênero? O que é ter gênero fluído? O que é ser queer? Perguntas que dançam em nossas cabeças, algumas vezes de modo desesperado, como quem busca uma definição precisa, quiçá fixa. Desespero que em outros momentos já nos fez recitar fórmulas que naqueles momentos pareciam ser exatas para se falar sobre identidades de gênero e que hoje obviamente nos causam um certo embaraçoso constrangimento. Simone de Beauvoir (1908-1986) já dizia que “ninguém nasce mulher, torna-se mulher” e não só nós, mas outras tantas pessoas aplicam essa ideia para todas as demais identidades de gênero. Não nascemos o que somos, tornamo-nos o que seremos nos parece uma premissa justa. O que pensar? Bem, a nossa posição é a de ouvir as vozes e acima de tudo respeitar como as pessoas se autodenominam, como se sentem, como falam sobre suas identidades e como preferem ser tratadas. Ninguém além de nós pode definir o que somos, embora na prática sabemos que a história seja outra, o que faz a questão da autonomia sobre si ser latente e urgente.
No I Seminário Queer – Cultura, Subversões e Identidades que aconteceu no ano passado (2015) no Sesc São Paulo, o professor Jorge Leite Junior chama a nossa atenção para que percebamos o que está se tornando o termo gênero e diz “o termo gênero está virando um monstro, ele está assustando as pessoas“. Segue dizendo que “(…) vai chegar no lado da pessoa e fala assim: gênero!” e simula uma pessoa em profundo espanto e horror, como se o termo – muito mais do que a palavra -, fosse o grande monstro do nosso tempo. “O gênero vai te pegar” satiriza o professor e emenda dizendo que “vai ter criança acordando a noite chorando dizendo que sonhou com gênero” e aponta o poder que o termo carrega.
( A fala do professor Jorge se inicia nos 30:40)
Neste pequeno texto que pretende trazer questões, muito mais do que conclusões, não vamos entrar no mérito das relevantes críticas ao I Seminário Queer, mesmo daquelas que partiram da militância LGBTTQI+. Também não vamos nos aprofundar nas manifestações contrárias ao seminário por parte das alas mais conservadoras e reacionárias da sociedade, que obviamente têm acompanhado todas as discussões que envolvam o gênero e têm feito um esforço fascista de se barrar esse diálogo dentro das escolas, com a justificativa torpe de que se trata de uma tentativa de impor uma ideologia de gênero, sempre somado de incalculáveis discursos de ordem LGBTfóbicas.
Tanto o evento que aqui mencionamos, que aconteceu em São Paulo, como o II Seminário Internacional Desfazendo Gênero realizado em Salvador, Bahia, que em comum tinham a presença da filósofa Judith Butler, sofreram grandes ataques, pressões e protestos por esses grupos reacionários, inclusive pelas redes sociais, como contou Leandro Colling, professor e coordenador do evento, em sua palestra no seminário do Sesc. Embora não nos aprofundemos mais do que isso, deixamos o alerta para as pessoas que por um acaso ainda não saibam que isso esteja acontecendo e com bastante força. Alertamos pois enquanto existe um esforço monumental para se barrar a discussão de gênero nas escolas estima-se que no Brasil a cada 1 minuto uma mulher é estuprada e a cada dia uma travesti é assassinada, e sobre isso, esses grupos nada dizem, além de projetar a culpa nas próprias vítimas desse sistema falido e quebrado.
Seguindo, já escrevemos sobre a questão de gênero no FRRRKguys e novamente retomamos o assunto, como dissemos acima, agora muito mais para questionar e buscar produzir diálogos, do que para oferecer conclusões acabadas. Essa retomada se deu após assistirmos uma série de problematizações acerca das identidades não cisgêneras, e falamos dessa forma em uma tentativa de aumentar ao máximo as possibilidades de entendimento e leitura acerca das identidades de gênero. Ao que parece, essas discussões se acirraram por meio de críticas – de modo geral negativas – à figura da talentosa cantora Liniker, que deixa claro que não se preocupa em dizer qual o seu gênero e, sendo assim, não se importa em ser tratada no masculino ou feminino e a despeito de todas essas discussões, fazemos questão de repetir, que ela é uma pessoa muito talentosa e carismática. Toda inquietação parece versar sobretudo sobre gênero e estética. Em resumo, a cantora concedeu uma entrevista para o jornal Estado de São Paulo e o título foi ‘Posso ser uma mulher de barba que usam batom, afirma Liniker‘. Então, as críticas diziam que Liniker reforça estereótipos de gênero e que como macho privilegiado, fetichiza o que é ser mulher. Um texto bastante interessante que encontramos em defesa de Liniker – e demais pessoas como ela – é de autoria de Mariah Avelino, que nos convida a sair urgentemente da internet e conhecer o mundo real, onde pessoas como Liniker são brutalmente assassinadas. Acrescentando que:
“Você vai, depois de ler tudo o que eu disse, ter coragem de dizer que na rua ele é endeusado? Que ele reforça estereótipo de gênero quando A QUALQUER MOMENTO alguém pode aparecer e dar um tiro nele? Você vai dizer que ele está fetichizando o que é ser mulher? Em que mundo vocês vivem? Eu realmente quero viver nesse mundo onde gays afeminados tem mil privilégios e não sofrem nada. Eu quero viver nesse mundinho de vocês que diz que um preto retinto de dread, batom e saia vai ser endeusado na rua. Me deixem participar desse mundo, por favor.”
(Entrevista com Liniker feita pela Trip)
O que é ser homem? O que é ser mulher? O que é ser trans*? O que é ser travesti? O que é não ter gênero? O que é ter gênero fluído? O que é ser queer? As famigeradas perguntas mais uma vez. Além delas, nos perguntamos fortemente sobre a importância de não silenciar ou tornar invisível as experiências das pessoas, os discursos que elas constroem sobre si, suas identidades inclusive de gênero. Teríamos o direito autoritário e colonizador de definir – com base em algum ou nosso sistema de crenças – como uma pessoa se identifica? Teríamos? Poderíamos?
Vestido, batom, barba, mulher, pênis, vagina, homem, salto alto, saia curta, trans, próteses, travesti, hormônios em looping em nossas cabeças…
No período em que estávamos refletindo sobre todas essas pautas e acompanhando algumas discussões, o tatuador Touka Voodoo que vive na Inglaterra publicou em sua rede social uma imagem e um texto que vieram a somar com as nossas reflexões. Somar, no sentido, de nos jogar no chão e fazer pensar tudo o que já tínhamos pensado novamente. Tudo isso com um solavanco de força. Acrescente a esse processo intenso, a própria experiência da pessoa que vos escreve agora. Falando aqui em primeira pessoa, eu tenho refletido 24 horas por dia, sete dias na semana, sobre que corpo é esse que sou agora e principalmente que corpo serei, ciente de que estou em constante construção, para atender as minhas necessidades como uma pessoa não cisgênera. Provavelmente essas reflexões apareçam em algum outro texto futuro e isolado, mas obviamente que transpassado pelas discussões postas aqui.
(Foto: reprodução / Instagram)
É POSSÍVEL PENSAR O GÊNERO DESCONECTADO DA ESTÉTICA?
“A gente fala sobre a autonomia dos corpos, mas desde que certas pessoas não façam algo em seus corpos. Ou seja, a autonomia vai até determinado limite e até as pessoas que lutam por direitos se limitam em determinado campo.”
Indianara Siqueira
A questão que nos moveu durante esses dias foi a de entender se é possível pensar o gênero desconectado da estética, seja para ser homem, mulher, travesti, os dois ou nenhum deles. A nossa hipótese era a de que não, não é possível pensar o gênero desconectado da estética, e encontramos respaldo na fala do professor Jorge Leite Junior:
“A promessa de estetização da vida. (…) Porque os conceitos de beleza, feiura, sublime, de grotesco, são políticos em si. Todo conceito estético é sempre um conceito político, toda estética representa valores éticos, religiosos, políticos, morais, eróticos de quem está julgando. Por isso, toda política necessita de uma estética e toda estética é política.”
Essa fala nos remeteu ao pensamento de Michel Foucault, apontando que todo saber é político, não há neutralidade quando pensamos o saber. A estética é um campo do saber, podendo ser um campo de batalha, tal qual nossos corpos. O professor Jorge Leite soma ainda a sua fala sobre a importância de se perceber a mudança estética como ação e prática política:
“As roupas que a gente usa é importante sim; O cabelo que a gente usa é importante; Os adereços que a gente coloca nas mãos, na cabeça, no pescoço, no corpo todo, no genital, qualquer lugar, são importantes, porque isso também é uma mudança política. Toda mudança estética é uma mudança política.”
Mudar esteticamente e, principalmente, quando essa mudança implica em não atender mais a demanda compulsória do que se convencionou entender e chamar como normalidade dos corpos, nos coloca diretamente no que podemos entender como grupo de vulnerabilidade social. O risco de perder – coisas e pessoas e a própria vida – é iminente, que aumenta significantemente dentro de uma perspectiva de classe econômica e eis um ponto para salvar em nossas memórias, a questão de classe é fundamental para se pensar o gênero e a estética e todas os assuntos acerca da vida.
Pensando, por exemplo, os corpos das travestis e transexuais no Brasil, e as violências que rondam essa população (prostituição, estimativa de vida de 30 anos, desemprego, segregação espacial e exclusão social), temos uma clara imagem do efeito da desumanização de um grupo de pessoas. A causa obviamente que não está no fato dessa população buscar atender uma demanda subjetiva que é também estética que basicamente corresponda suas necessidades essenciais de existência, mas sim em uma sociedade que diz – amparada sobretudo em discursos religiosos – que essas existências não são legítimas e por isso elas precisam ser exterminadas. Acreditem, elas – essas existências que são pessoas – realmente têm sido, dia após dia, aniquiladas.
Sobre a pergunta que nos acompanhou, é importante reforçar que a nossa hipótese é que não é possível viver o gênero – cis ou não – sem a estética. E é através de uma estética que o gênero pode vir a se tornar inteligível, embora há uma parte das pessoas chamadas como dissidentes de gênero que buscam justamente viver – porque é isso o que elas são e é disso que se trata, viver – essas identidades que escapam da norma. Então queremos escrever adiante algumas linhas sobre as identidades que não são facilmente reconhecidas socialmente – intencionalmente ou não – e são muitas vezes pensadas como subumanas, inumanas, como abjeções. Escrever – como fizemos desde o começo – sobre essas identidades através de uma perspectiva daquilo que temos chamado de Teoria Freak ou a Teoria Anormal.
IDENTIDADES DIVERSAS
“I fink U freeky and I like you a lot”
Die Antwoord
O ponto crucial de nossa reflexão está em propor a estetização como forma de empoderamento. Corpos considerados abjetos pelo discurso hegemônico, podem e devem também ser configurados dentro de um projeto estético daquilo que é belo. Como em sua palestra, o professor Jorge Leite nos pontua sobre o “black is beautiful” da década de 70, também dos corpos das pessoas com deficiência e com isso chegamos até mesmo em nós, quando em 2006 afirmamos que pretendíamos abordar a beleza freak masculina, que parece muito claro agora mas que nem sempre o foi. O freak – aquilo que é estranho, no sentido pejorativo pelo discurso dominante – e o masculino – dentro de uma lógica heteronormativa – não podem e não deveriam estar imbuídos de um conceito estético daquilo que é belo sem escapar de um linchamento, sobretudo, homofóbico. Justamente aqui que as teorias queer, crip e freak se encontram, especificamente onde a abjeção é uma característica presente em todas elas, quando pensamos os corpos dessas pessoas. Quando sim, consideramos necessário reconhecer que a estética – não isoladamente – tem sido uma ferramenta bastante potente de empoderamento e resistência.
GÊNERO E BODY MODIFICATION
A relação entre gênero e body modification vem sendo cruzada já não é de hoje. A dissertação de mestrado ‘Além da Pele‘ do professor Camilo Braz já fazia uma grande contribuição em 2006. Soma-se ainda, o professor Jorge Leite apontando que quando pensamos sobre gênero e intervenções corporais, é preciso aproximar intimamente o diálogo com os estudos da body modification, dizendo que “enquanto a gente reclama, eles fazem“. Justamente porque, segundo ele, o grupo de pessoas ligadas com a body modification está discutindo – ainda que seja através de suas próprias existências – qual é esse padrão de corpo e estética que tem validade dentro de uma perspectiva social. Embora tenhamos mostrado em outros textos que escrevemos, que também existe o movimento contrário, que existe uma parcela bastante conservadora e reacionária dentro da body modification e que vai justamente se apropriar dessas técnicas para atender um discurso higienista muito próximo do dominante, que carrega como mote a normatividade da vida. Parcela esta que inclusive tem bastante aversão sobre as discussões de gênero e é sobretudo transfóbica e sexista. Muito mais do que estragar prazeres, deixamos o alerta do solo em que pisamos. Longe de ser tudo flores, bem longe.
Mas é preciso de fato reconhecer que dentro da comunidade da modificação corporal as questões sobre sexualidade e gênero fervilham há tempos e com muita intensidade. Ainda assim, é preciso frisar que estamos falando de pequenos grupos, quase isolados e perdidos no montante e em sua maioria porque assim o querem. O que obviamente é compreensível dentro de uma análise de autodefesa contra o aparato do Estado que provavelmente interditaria a maioria dessas pessoas. Por outro lado, essa invisibilidade infelizmente não colabora com um confronto declarado e direto contra as LGBTfobias dentro da própria comunidade, que como dissemos acima existe e não é pouca coisa.
O binarismo de gênero, por exemplo, para essa pequena parte desse pequeno grupo, é algo que já ficou para trás há pelo menos 3 décadas. Identidades de gênero não cis têm sido vividas das mais variadas formas, embora exista um véu transparente e pesado sobre a questão, ao ponto de não invisibilizá-la mas também não deixando-a emergir para uma discussão que consideramos urgente e fundamental. O livro Modcon traz inúmeras personagens das quais estamos nos referindo e deixa a informação que há mais do que está mostrado ali e que nunca conheceremos. No filme Transamerica (EUA, 2005) dirigido por Duncan Tucker, a frase do homem trans dizendo “nós estamos entre vocês” é bastante verossímil com toda essa situação.
Além do livro Modcon (2002) escrito por Shannon Larratt (1973-2013), citar alguns nomes de dissidências de gênero que estão bastante além do binarismo – partindo de uma mudança estética – dentro da comunidade da modificação do corpo se faz importante: Dennis Avner aka. Stalking Cat, Eva Medusa, Eldge, Jim Hall aka. Blue Comma.
(Blue Comma. Foto: John Kardys Photography)
(Eldge)
Somamos agora com as experiências estéticas e de vida promovidas por essas figuras, finalmente chegamos no texto importante e provocativo do tatuador Touka Voodoo, que reproduzimos uma tradução abaixo:
“Depois de passar os últimos 7 anos explorando os papéis de gênero, eu já percebi o quão bizarra as sociedades dos “frames de gênero” são. Assim como o quanto mais somos tratados de forma diferente dependendo do gênero que parecemos ser. Eu nasci do sexo feminino em 1972. Em 2009 comecei minha terapia hormonal de testosterona para conseguir características mais “masculinas” e em 2010 eu fiz uma mastectomia para remover os meus seios. Passei os últimos 7 anos vivendo como um “ele” tendo a chance de realmente observar de perto a forma como homens e mulheres interagem comigo, uma vez que assumir que eu sou masculino. Em seguida, depois de passar os últimos 3 anos em solidão (exceto interações sociais no trabalho), comecei a pensar mais profundamente sobre este assunto de gênero a partir de uma nova perspectiva. O gênero está embasado nos papéis sexuais que gostamos de jogar? Quais são os nossos interesses? Se brincamos com bonecas enquanto jovens? Ou com carros e homens de ação? É baseado em ter seios? Não seios? É com base na genitália? É baseado em pelos faciais? Sem pelos faciais? O que é um homem? O que é uma mulher? Então, se eu sair para um encontro antes de injetar hormônios testosterona em meu corpo, então, a outra pessoa pagaria a conta? E depois de uma injeção de testosterona? Sou eu então que espero para pegar a conta, carregar as sacolas? Ser difícil? Eu os deixo nervosos quando eles olham para mim e não podem adivinhar o meu gênero? Eu os deixo nervosos quando eu tenho uma cabeça raspada, mas uso salto alto? Será que eles pensam que todas as mulheres brincam com bonecas enquanto jovens e, então, têm o cabelo longo e uma pequena tatuagem de borboleta? Eles conectam a beleza de uma mulher com um sentido de vulnerabilidade e falta de força. Será que a estética de uma mulher tem que apelar para o seu chauvinista mau gosto? A resposta é não. Nós somos livres. Nós não vamos tolerar a ignorância. Nós não vamos tolerar a homofobia. Nós não vamos tolerar quadros e caixas feitas por um antigo sistema de crença cansado que foi inventado para a reprodução e domínio econômico total.”
(Touka Voodoo. Foto: reprodução / Modblog)
Por fim, muito distante de ser um fim, mais do que saciar um desejo de compreender mais a fundo todas essas questões e principalmente tudo o que elas movimentam, nós queremos que essas pessoas – todas elas – tenham o direito básico e fundamental da vida. Não temos respostas. Os corpos estão em obras. A vida é rara. Só a diversidade salva.