Resenha: ‘O direito à liberdade de uso e (auto) manipulação do corpo’ de Mariana Lara

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“Só é possível falar em pessoa e, mais além, em pessoa digna quando há autonomia, interação, valores constitutivos e corpo.”
(LARA, 2014, p. 25)

 

Não é de hoje que venho me preocupando com a questão das pesquisas acercas das modificações corporais dentro da academia. Nas últimas décadas tenho colaborado com diversos trabalhos acadêmicos, em distintos graus de titulação (graduação, mestrado, doutorado e até pós-doutorado) e me parece natural que essa preocupação surja. Somado disto, tenho lido bastante pesquisas sobre a temática – uma vez que me considero uma pessoa pesquisadora além de entusiasta – e o que percebo é que existe uma certa repetição nas escolhas das perguntas que se fazem, o que impacta em uma produção limitada que muitas vezes parece se repetir ad infinitum. Muitas vezes também tenho a sensação que algumas pesquisas ficaram congeladas no tempo, desgastadas e anacrônicas e que pouco colaboram efetivamente com os diversos saberes e debates das humanidades acerca do corpo modificado. Talvez isto seja reflexo do distanciamento e pouco envolvimento entre pessoa pesquisadora e objeto de pesquisa, mas que tem urgência em se mudar.

Já de antemão – e debruçado na introdução anterior – indico a relevância e importância do trabalho de pesquisa feito pela mestre em direito e professora de direito civil, Mariana Lara. O livro ‘O direito à liberdade de uso e (auto) manipulação do corpo’ (2014) lançado pela D’Plácido Editora, Belo Horizonte, é uma dessas pesquisas que escaparam das perguntas repetidas sobre os usos do corpo e cumpre a função de utilidade pública para a comunidade da modificação do corpo brasileira e inclusive para todas as ciências humanas.

Mariana Lara trata não só as modificações corporais dentro do recorte das técnicas como tatuagem, piercing, escarificação, implantes, mas fala declaradamente sobre elas – o que é raro e novo, partindo de alguém do Direito – e vai além, reconhece essas práticas como culturais e históricas e como um direito fundamental humano. Aproxima frequentemente suas reflexões com as modificações corporais feitas pelas pessoas transexuais e também não hesita em problematizar criticamente as amputações. Em todas as técnicas que abordou em seu livro buscou não tratar nenhuma delas com um olhar conservador, controlador ou autoritário. Com muita clareza em seu raciocínio e texto, nos convida o tempo todo para refletir sobre essas pluralidades de existências. Sublinhando constantemente que a autonomia de uso do corpo está relacionada com a própria dignidade humana.

 “Por meio do corpo, a pessoa pode exercer sua autonomia, que é a capacidade de legislar para si mesma, de se autodeterminar, de fazer escolhas e de se responsabilizar por elas. É poder escolher o que é vida boa para si e buscar sua realização.”
(LARA, 2014, p. 24)

 A pesquisadora abordou a questão da performatividade em relação as identidades humanas, utilizando como base os estudos do cientista social Erving Goffman, no entanto, se aproximando bastante dos estudos de Judith Butler, professora e pesquisadora sobre Teoria Queer. Coloca luzes sobre a importância de entender o corpo – o que abarca sexualidade e gênero – como parte do processo de construção social.

Um pequeno deslize se deu pela autora ao usar o sufixo “ismo” ao falar da transexualidade e homossexualidade. Como se sabe e, ela mesmo elucida na obra, a homossexualidade esteve no CID (Classificação Estatística Internacional de Doenças) até 1990 no Brasil e a transexualidade ainda está, sendo considerada pela OMS (Organização Mundial de Saúde) como transtorno de identidade de gênero, em outras palavras, transtorno mental. Sendo assim, entende-se que o sufixo “ismo” endossa o texto que as sexualidades não heterossexuais e as identidades de gêneros trans* sejam patológicas e por isso não é adequado o seu uso.

Seguindo com a nossa análise, Mariana Lara aponta o quanto o Código Civil – mais especificamente o artigo 13 – é cerceador e, tão logo, inadequado para um Estado democrático de direito, sugerindo inclusive sua completa revogação. Ainda, tecendo duras e necessárias críticas ao sistema jurídico e ao conservadorismo do Direito no que concerne a auto-manipulação do corpo, Lara, nos lembra que para essa instituição:

“O corpo é visto como um dado natural, pronto e acabado, não passível de modificações artificiais. O Direito, em seu conservadorismo arrebatador, endossa tais concepções medievais, inserindo-as em seus diplomas normativos. A pessoa humana é um ser autônomo, que pode escolher a vida boa que pretende viver.”
(LARA, 2014, p.69)

 E já que falamos aqui sobre conservadorismo e autoritarismo, é importante derrubarmos os mitos de que o Brasil seja o país da democracia racial e que o povo brasileiro é pura cordialidade. O racismo no Brasil é hediondo e está espalhado em todas as esferas da vida e o ódio – principalmente contra todas as pessoas consideradas anormais ou fora do padrão – marcou e segue marcando com sangue toda a nossa história, como muito bem colocou Fred Di Giacomo no artigo ‘A história do ódio no Brasil’. Assim como a própria pesquisa do IBOPE de 2007, resgatada por Mariana Lara, nos trouxe que:

Houve praticamente unanimidade na afirmação de que o Brasil é um país preconceituoso, contrariando a crença de que aqui predomina o mito da democracia racial. Além do preconceito racial, foram colocadas em questão outras formas de preconceito, tais como a repugnância aos gays, fumantes e às pessoas com tatuagens e piercings.’

 Para concluir, é impossível pensar sobre autonomia, defendida ferrenhamente na obra, desconectado da ética e a “vida boa” de que tanto Lara fala, nos fez pensar nas palavras da filósofa Márcia Tiburi:

 “A solução para uma sociedade se construir como uma sociedade ética, dificilmente virá de cima para baixo. O sujeito, a pessoa ética, vai sempre ter a vontade de fazer um mundo melhor, em qualquer esfera, se ela for médica ou lixeira, dona de casa ou feminista, acho que o desejo é de fazer um mundo melhor. Para fazer um mundo melhor eu preciso me dar conta que esse mundo pertence a cada indivíduo e que as singularidades devem ser promovidas. Essa singularidade reconhecida implica justamente no reconhecimento da alteridade, da outra pessoa e da nossa chance de convivermos para construir um mundo bom para todo mundo. Um mundo bom para todo mundo de verdade, não um mundo para todo mundo segundo a minha visão de mundo”.

 

O livro de Mariana Lara é sem dúvida alguma um passo importante para que possamos caminhar rumo a esse mundo bom, essa vida boa, para todo mundo. Que ele inspire pesquisadores das mais diversas áreas e que colabore com toda e qualquer pessoa que pretenda fazer uso de seu próprio corpo e encontrar sua felicidade pessoal. Fim ao cabo é sobre isso que se trata, pessoas buscando encontrar a felicidade em existir.

 

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