No dia 03 de Abril, a tatuadora Aline Torchia, de São Paulo, expôs uma situação discriminatória que passou no Hospital Sancta Maggiore do Alto da Mooca, rede conveniada com a Prevent Senior. Em sua denúncia via Instagram ela escreveu:
“Já é a segunda vez que vou no Hospital Sancta Maggiore no Alto da Mooca. Prevent Senior e as enfermeiras quase arrancam a minha pele e pelinhos do braço e ao sentir muita dor e falar para ter calma para tirar o esparadrapo, a resposta é a mesma: – “Toda tatuada e com dor, com frescura?”.
No texto ainda, a tatuadora disse que não teria uma terceira vez e que iria procurar seus direitos por estar sendo discriminada – e, por conta disso, não recebendo um atendimento apropriado – pelo hospital. O caso da tatuadora está longe de ser isolado e acende a luz sobre um poço que não mostra ter um fim, mas que precisa ter.
Para nós pessoas com modificações corporais e freaks, ir procurar ajuda médica ou realizar simples exames de rotina é quase sempre saber que voltaremos pior do que fomos buscar ajuda, supostamente, especializada. Situação que afasta a nossa população dos serviços de saúde e que, por sua vez, impacta em nosso adoecimento e baixa expectativa de vida. Em muitas outras coisas mais, mas paremos aqui.
A ficção muitas vezes reafirma essa relação de violência da realidade, como em 2014 a série Grey’s Anatomy o fez trazendo uma personagem que era a representação de Stalking Cat (1958-2012), como escrevemos em O que pretendeu a série Grey’s Anatomy ao falar de modificações corporais?
Importante já destacar, que nós – pessoas freaks – somos apenas uma pequena parte do tratamento perverso que o sistema de saúde público e privado tem oferecido para grupos de pessoas que historicamente foram e são subalternizadas, marginalizadas e desumanizadas.
Assim sendo, é preciso, antes de tudo, olhar para esse problema grave e crítico em uma perspectiva que considere classe, raça, gênero, sexualidade, deficiência e etc. Pensando raça, gênero e classe, no texto Nas maternidades, a dor também tem cor escrito por Rute Pina e Raphaela Ribeiro da Agência Pública é discutido os estereótipos de que mulheres negras são mais fortes e resistentes e, por conta disso, sofrem com falta de analgesia no momento do parto. A atriz e escritora Elisa Lucinda em sua participação na bancada do Roda Vida, em dezembro de 2017, mencionou que negras e negros pobres recebiam menos anestesias em hospitais públicos.
Pensando transgeneridade (e por favor, interseccionem com classe, raça e deficiência), no texto Dia da Visibilidade Trans: acesso integral à saúde ainda enfrenta grandes desafios escrito por Lucas Rocha para CNN Brasil trata da discriminação, despreparo dos profissionais, acolhimento inadequado, a dificuldade no entendimento da transgeneridade e a ausência de programas específicos voltados ao combate ao preconceito afastam essa população dos serviços de saúde. Não nos esqueçamos de Lorena Muniz, mulher trans de 25 anos, abandonada inconsciente dentro de uma clínica durante um incêndio. Descaso que custou sua vida.
Pensando gordofobia, precisamos lembrar de Vitor Augusto Marcos de Oliveira, de 25 anos, que morreu em 5 de Janeiro de 2023 enquanto aguardava uma maca especial para pessoas gordas. O jovem teve atendimento recusado em outras 6 unidades de saúde não por conta de seu corpo, mas por conta de instituições de saúde potencialmente despreparadas para atender a pluralidades de corpas e corpos. A mãe de Vitor, denunciou que foi colocado lixo dentro do caixão do seu filho pela empresa funerária. Ou seja, nem depois de morto (assassinado?), Vitor teve sua dignidade respeitada.
Nada disso é caso isolado, é uma emergência que escancara a nossa configuração de mundo equivocada e perversa. É uma calamidade! É uma emergência!
Uma emergência!
Uma emergência!
Uma emergência!
Relatos de pessoas freaks no sistema de saúde
No sistema de saúde público e privado, nós, pessoas freaks e dissidentes de modo geral, recebemos um tipo de olhar que explicita o desprezo por nossas vidas precárias. Talvez um dia eu consiga colocar esse olhar em palavra. Não consigo agora, não consigo ainda… É uma mistura de espanto com nojo. O olhar que vasculha, dos nossos pés até a cabeça, sem tentar disfarçar o incomodo, a justificativa para o desprezo que nutriu por nós à primeira vista. Não há olho no olho (eles não conseguem nos olhar nos olhos). Há apenas o famigerado olhar de desprezo. O olhar que suspeita de nós com base em nossas corpas e corpos.
Incontáveis vezes já virei as costas do consultório e voltei para casa apesar de não estar bem. Incontáveis vezes não fui buscar ajuda médica para não me submeter ao descaso e destrato apesar de não estar bem. Cansei de dizer para mim mesma adoecida, hoje eu não quero receber aquele famigerado olhar, hoje eu não aguento. Incontáveis vezes ouvi que gosto de dor, que aguento mais uma picada, que pouca anestesia é suficiente porque sou forte e em muitos desses momentos eu só queria desaparecer. É horrível estar sem conseguir respirar direito por conta da asma e precisar receber todo esse tipo de coisa e julgamento. Incontáveis vezes também a desconfiança do motivo que me levava no pronto socorro, sugerindo daquela forma que a gente conhece bem, que seria abuso de álcool ou alguma droga ilícita. E mesmo se fosse, a função do serviço de saúde seria oferecer acolhimento, cuidado, redução de danos e atendimento apropriado e não um julgamento moral e policialesco daquilo que alguém escolhe consumir. Incontáveis vezes, ao fim da consulta, recebi folheto com alguma mensagem bíblica de alguma igreja neopentecostal, muito típico de quem julga que estamos na perdição e precisamos de uma salvação colonizadora cristã. Evito, por conta de tudo isso, ir ao sistema de saúde mesmo adoecida. Evito uma rotina médica preventiva porque é um ambiente que mais me adoece do que cura. As minhas experiências, não são apenas minha. Há um eco.
No episódio Perfura da websérie Singularis (2016), o body piercer Andre Fernandes contou que seu primeiro filho aos 15 dias de vida teve uma convulsão e que, por conta da mãe e do pai serem pessoas com modificações corporais, pairou uma suspeita de que o casal na época fosse usuário de drogas, o que teria disparado a convulsão na criança.
Katia Marcolino, a mãe da criança, em entrevista exclusiva para o FRRRKguys em 2019, lembrou que os médicos queriam que ela confirmasse que tinha feito uso de drogas durante a gestação e amamentação. Andre e Katia precisaram apresentar laudos toxicológicos para confirmarem que estavam falando a verdade, ou seja, que não havia consumo de drogas.
Nos dois textos que escrevemos em 2019 sobre maternidade e modificação corporal, respectivamente Maternidade e modificações corporais no começo do ano 2000 e Maternidade e Body Mods: ‘para surpresa geral meu filho não nasceu tatuado’, os relatos de tratamento inadequado e discriminação são fortes embasados por premissas da patologização, demonização, toxicomania e marginalização.
Preservando as identidades das pessoas que dialogamos para escrever esse conteúdo, compartilharemos abaixo relatos de pessoas freaks que buscaram atendimento médico por diversas razões e que não receberam um atendimento minimante aceitável.
De modo geral e constante, a visão estereotipada que as pessoas que trabalham com saúde tem sobre nós, pessoas freaks, é que não sentimos dor, que suportamos mais a dor e que gostamos da dor. Esse tipo de visão estereotipada e perversa, autoriza esses e essas profissionais a intervirem em nós, como se nosso corpo fosse qualquer coisa e que, assim sendo, pode receber qualquer tipo de tratamento – ferindo a nossa dignidade, criando feridas em nossa carne.
Não podemos normalizar esse tipo de tratamento e tão pouco passar por ele passivamente. Embora seja muito difícil reagir diante de uma violência, principalmente quando estamos doentes, não podemos continuar deixando isso passar. Precisamos falar e escrever sobre, denunciar para os conselhos e órgãos responsáveis e, sobretudo, nos fornecer saúde nesse sistema configurado para nos adoecer principalmente quando estamos fragilizades.
Depoimentos
“Numa crise de ansiedade, fui ao hospital. Consegui chegar sozinhe, mas muito estraçalhade. Passei pela triagem e a enfermeira me olhou de cima a baixo ou de baixo pra cima e disse que eu estava com abstinência de cocaína… Simples assim. Sendo que nem poeira posso respirar direito. Tentei falar com ela que eu não fazia consumo da substância, mas sem negociação. Quando passei pelo médico eu era a pessoa que estava com abstinência de cocaína. Enfim…”
anônima 1
“Uma vez me furei com uma agulha. Fui no pronto socorro e informei que sou tatuadora e tinha sofrido acidente com material perfuro cortante contaminado enquanto trabalhava. O médico me ignorou e perguntou se eu trabalhava com sexo. Expliquei novamente como me furei com a agulha de tatuagem. O medico insistiu que eu devia usar camisinha com estranhos e quando passou a guia para eu fazer tratamento da PEP me mandou para o ambulatório de moléstias infecciosas e não para o ambulatório do trabalho. No ambulatório de moléstias pelo menos fui bem atendida e me mandaram para o lugar correto.”
anônima 2
“Fui em uma endocrinologista por conta de umas manchas que apareceram no meu corpo, a médica não conseguiu encontrar um diagnóstico mas falou pra mim usar menos roupa preta e escreveu uma receita me indicando um livro cristão. É até meio cômico a mulher achando que eu estava era com o demônio no corpo, mas isso pode ser muito sério, tenho uma amiga que quase morreu por conta desse tipo de preconceito. O hospital se recusou a atendê-la, mandaram ela procurar o serviço de saúde mental porque ela supostamente estava drogada, ela procurou o serviço 2 vezes, mas só foi atendida depois que o toxicológico mostrou que ela estava limpa, na verdade ela estava tendo um AVC hemorrágico.”
anônima 3
“Também tive um acidente com a agulha que usei para perfurar uma cliente e quando fui ao pronto socorro buscar o tratamento adequado fui tratada como se fosse uma adolescente inconsequente que não se importava com nada. Fui perguntada 3 vezes se eu estava grávida e se eu tinha certeza disso, sendo que eu já tinha dito que tinha 100% de certeza que não estava (até porque tenho um relacionamento mono com uma mulher cis). Em seguida, me perguntaram sobre vacinas e fui criticada por não estar com a minha antitetânica em dia, dizendo que isso era um absurdo porque eu trabalho com agulha (elas estão enferrujadas, por acaso?). Enfim, segui com o tratamento preventivo recomendado. Mas sinceramente foi péssimo ser olhada como uma pessoa inconsequente e irresponsável, sendo que foi um acidente. E nem se fosse o caso, respeito e acolhimento é o mínimo que se espera diante de uma situação como essa ou semelhante. Depois, pensando no que tinha acontecido, entendi que fui menosprezada nos meus conhecimentos de saúde e julgada devido à minha profissão e/ou aparência física. Isso me deixou muito decepcionada com os profissionais (tradicionais) da saúde. O uso de drogas também foi questionado várias vezes com olhar de descrença, isso me irritou muito também.”
anônima 4
“Bom... Eu tenho doença crônica, fibromialgia para ser mais específica… E quanto estou em crise, o que é quase sempre e que preciso ir ao medico, sei que vai ser difícil. Sempre debocham de mim, por conta das tatuagens, olham pra mim e falam que não tenho nada, que é frescura, que sou nova demais para ter tal doença. Porque toda tatuada com a minha forma de viver, vestir, como pode ou que eu suporto qualquer coisa, já que tenho o corpo tatuado. É bem complicado… Na minha gestação fui totalmente mal tratada, em todos os momentos… fui muito humilhada, machucada … e por aí vai…”
anônima 5
REFERÊNCIAS
Nas maternidades, a dor também tem cor
https://apublica.org/2020/03/nas-maternidades-a-dor-tambem-tem-cor/
Dia da Visibilidade Trans: acesso integral à saúde ainda enfrenta grandes desafios
https://www.cnnbrasil.com.br/saude/dia-da-visibilidade-trans-acesso-integral-a-saude-ainda-enfrenta-grandes-desafios/
Mãe de obeso morto sem socorro acha lixo em caixão do filho: ‘gordofobia’
https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2023/01/12/jovem-que-morreu-esperando-maca-seria-enterrado-com-lixo-no-caixao-em-sp.htm