Vamos conversar sobre a Rede Record e as modificações corporais?

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Foto: reprodução/Youtube

Certo, a Rede Record fez mais um programa abordando as modificações corporais. Como sempre fazem e não dão sinais de mudar. É certo dizer que – mais uma vez – faltou sensatez e ética. O que é pedir muito de algo vindo da Rede Record. Eu sei e no fundo eu sei que você também sabe…

Não vamos escrever um texto curto e superficial sobre o assunto porque o que eles veiculam lá afeta e impacta as nossas vidas aqui no mundo real. Não basta apenas falar “ok, foi um programa ruim”, temos que olhar ponto por ponto, entender os efeitos negativos que a Rede Record cria para visibilidade das modificações corporais com efeitos não só em como nossas existências são vistas, mas controladas.

Abaixo iremos refletir um pouco sobre o programa exibido no dia 09 de Agosto de 2020 e essa relação conflituosa entre a emissora e as modificações corporais.

Vamos lá…

A insistência da imprensa pelo desprezo do que não é igual (e nem nunca será)

Desde que as modificações corporais – dentro da configuração que conhecemos – passou a ser mais difundida no Brasil a grande imprensa tem buscado tratar do tema. Na grande maioria das vezes errando propositalmente e grosseiramente. Lá em 1996 o escritor e psicanalista Contardo Calligaris (1948-) já criticava essa postura. Bem pouco mudou duas décadas depois e em algumas emissoras nada, absolutamente nada, mudou.

Na época em que o texto de Calligaris foi escrito, o grande debate – com tom de horror e terrorismo – feito pela imprensa era sobre o branding (escarificação feita com ferro quente). Sobre isso o autor disse:

“Engraçado que tudo isso chegue agora em tantas conversas em Nova York, e espalhe-se na imprensa, quer seja em um tom de horror (“Olha o que estão fazendo com seus próprios corpos”) ou com um tom de desprezo (“Ah, são só um bando de marginais, primitivos modernos, alienados ou rejeitados por uma América que se torna cada vez mais exclusivamente high-tech”)

(CALLIGARIS, 1996, p. 110.)

Calligaris aponta que o fator engraçado está em saber que quando olhamos para as modificações corporais – como a marcação da pele com ferro quente – estamos diante de uma cultura secular (a escarificação) e, aprofunda a crítica, ao dizer que somos um povo que culturalmente se marca e que adora assim o fazê-lo, traçando um paralelo com as etiquetas e as grifes cada vez mais presentes, expostas e maiores. “Se você custar em acreditar, dê uma olhada no espelho”, provoca o autor, que pede ainda que não façamos “nenhum escândalo hipócrita” sobre as pessoas que se marcam, modificando seus corpos.

Além das marcas que carregamos nas roupas e objetos, não podemos perder de vista que todo corpo vivo passa por processos de escolhas de modificações corporais. Pode não ser um body piercing ou uma tatuagem, mas é um aparelho dentário ou um clareamento do dente. “Não há corpo vivo que não seja modificado”, já dizia o Manifesto Freak.

No entanto, há uma insistência perversa e proposital por parte de jornalistas e grandes emissoras em se produzir e reproduzir esse tipo de narrativa que nos estigmatiza , nos subalterniza e nos desumaniza.

Inclusive, eles – jornalistas e grandes veículos da imprensa –  ganham prêmios por seus trabalhos, quanto mais nos desumanizam e negam nossas dignidades mais chance de se alcançar algum tipo de atenção (e dinheiro).

Mesmo quando morremos – ou nos assassinam – nos tratam como coisas, bichos, inumanos e não temos o direito – nem na morte – da dignidade humana. Poderia citar alguns exemplos mas irei me concentrar no caso de Filipe Klein (1983-2004) que rendeu o Prêmio Esso de Jornalismo de 2004 ao jornalista Renan Oliveira pela reportagem sobre sua morte.  Dez anos depois a Rede Record faria uma nova reportagem sobre Filipe e, mais uma vez, de modo oportunista e covarde roubando sua dignidade em umas espécie de vilipêndio.

Uma parte da grande imprensa tem trabalhado com afinco para manutenção dos estereótipos, demonização, patologização, perseguição e criminalização das pessoas com modificações corporais e de uma cultura que visivelmente eles não estão dispostos a entender. Antes os circos de horrores e zoológicos humanos, hoje os programas sensacionalistas e jornalistas vis que nos objetificam e nos roubam até a alma. Até a alma…

Sim, de novo a Rede Record

Ah! A Rede Record… De novo ela…  
São – no mínimo – vinte anos trabalhando em suas reportagens com a temática das modificações corporais e não aprendem nada. Não é simplesmente burrice o fato de repetirem incontáveis vezes o mesmo erro é um projeto ideológico de poder da emissora. Tem mau caratismo e tem má intenção. Tudo pensado e estudado para trazer audiência e, com ela, muito, mas muito dinheiro mesmo.

A Rede Record anualmente produz alguma matéria para discutir as modificações do corpo. São no mínimo vinte anos produzindo materiais de forma irresponsável que segue acompanhando o surgimento de cada novo procedimento.

Já que a Rede Record não está disposta a aprender porque ela lucra com isso, que a nossa comunidade da modificação corporal aprenda a se proteger e não aceite mais participar de nenhum programa que por desventura eles inventem. Parece ser algo inofensivo e parece ser algo legal estar na televisão, só que não. Quando você assina o contrato de liberação de imagem com a Rede Record (ou qualquer outra emissora), você está entregando a sua vida. No caso da Rede Record (algo bem similar e horrível aconteceu com a BBC inglesa), você acha que sua imagem será veiculada uma única vez no programa que te convidaram e quando você menos percebe lá está sua imagem em programas de fundamentalistas religiosos – ou investigativos – que ficam decidindo se você tem algum tipo de distúrbio mental ou demônio ou se está cometendo um crime. Eles fizeram isso repetidas vezes, convidavam pessoas para uma entrevista aparentemente legal e depois a noite reproduziam a entrevista fora de contexto no Programa Fala que eu te Escuto produzido pela Igreja Universal do Reino Deus do Bispo Edir Macedo, cidadão que acumula fortuna de 2 bilhões segundo a Revista Forbes.    

Uma tática sórdida que eles usam também é convidar alguém da nossa comunidade e fazer um combinado de pauta e depois que você assinou o contrato as coisas “mudarem”. Já ouvi relatos de amigas e amigos de que as produtoras não respondem as mensagens, inventam desculpas mirabolantes e quando o programa vai ao ar… Desastre.

O Câmera Record e os chamados Corpos Extremos

Em uma tentativa fracassada de produzir algo como o programa Tabu da National Geographic, o Câmera Record com o episódio Corpos Extremos buscou trazer pessoas que modificam seus corpos e confrontá-las com a opinião de especialistas, unicamente da área da saúde mental e medicina estética. O programa apresenta  pessoas ligadas com as modificações corporais dentro do nosso recorte e outras que estão se construindo por meio de maquiagem (é…) e cirurgia plástica para se tornarem bonecas.

Em uma das sinopses disponíveis no Youtube, encontramos que “especialistas comentam sobre o significado dessas mudanças e os perigos”. Temos 3 profissionais da psicologia, 2 cirurgiões plásticos e 1 psiquiatra que ficam lá, sentados nos tronos de suas certezas oriundas da normatividade compulsória da classe média branca brasileira. Não há um contraponto de especialistas. Não há um outro ponto de vista de especialistas. Não há uma outra narrativa de especialistas. Há o embate  de mundo e o confronto de realidades entre os ditos normais (eles) e os anormais (nós).

A escolha em levar somente profissionais da saúde mental e medicina estética é a demonstração explícita de que eles – o programa – entendem essas manifestações culturais enquanto um fenômeno de doença mental e que precisam da tutela de cirurgiões plásticos pra nos salvar de todos os malefícios da nossa cultura.

Quando a premissa está errada, todo resto desanda. Não cabe aos especialistas darem significados para corpos e subjetividades que não as delas e as deles. As pessoas são mais complexas do que uma passada de olhos e algumas frases ditas na frente de alguma câmera. O que se espera de especialistas minimante sensatos e profissionais éticos é que abram diálogo,  escuta e que não fiquem despejando ideias, sistemas de crença, estigmas e preconceitos produzidos e reproduzidos – veja bem – também por grandes emissoras como a Rede Record.

Com perguntas bobas ou afirmativas sem sentido (que talvez fizesse sentido no século passado) que vão do “e se você se arrepender” ao “como você faz para comer”, passando pelo “você parece rockeiro”, os repórteres vão fazendo seus apontamentos e as palavras dos especialistas com seus pesos – dada a área que cada qual representa – vão surgindo: rejeição, não aceitação, inadequação, vício, autoflagelação, autopenitência, etc, etc, etc… 

O programa vai por caminhos mais obscuros e perigosos quando contam com a boa vontade das pessoas entrevistadas e no meio de tudo alegam que o procedimento de escarificação feito por uma das participantes, Carol Prado, é exercício privativo da medicina segundo a Lei 12842-13.

Vamos fazer o exercício agora de imaginar uma pessoa que estuda medicina para trabalhar com escarificação no Brasil. Vocês conseguem imaginar a cena? Eu não. E se de um lado a cena me parece impossível de se construir, mesmo na imaginação – e eu sou uma pessoa criativa –, por outro eu fico imaginando médicos indo pedir permissão de uso aos povos tradicionais pelas diferentes técnicas de escarificar corpos. Essa cena me parece mais interessante embora mais impossível de se realizar.

E nada disso é meramente entretenimento. Uma das vezes que a Rede Record fez algo similar, quando abordou o eyeball tattooing, depois tivemos um projeto de lei de um deputado de inclinação fascista para criminalizar a prática. O texto todo do projeto de lei foi criado com base no programa – inclusive as falhas de pesquisa e Fake News – e aqui sublinho o perigo da nossa comunidade em aceitar os convites da emissora. É cilada.

Conversas com as pessoas que participaram do programa

A abordagem do Câmera Record em Corpos Extremos das modificações corporais (dentro do nosso recorte) levam um tempo aproximado de 20 minutos, divididos em dois blocos. Em um bloco temos a participação do Marcelo BBoy e no outro bloco o casal Prado, com Carol e Michel.

No caso do Marcelo o programa conta sua história de vida. Só que essa história vai sendo contada e manipulada de acordo com os interesses da emissora. O fim do programa apresenta uma espécie de conflito muito sério entre Marcelo e sua mãe, que fica no ar, pela construção da narrativa, de que as modificações corporais tenham uma parcela de culpa. O conflito apresentado pelo programa faz com que a mãe de Marcelo se recuse a encontrá-lo e assim se fecha o bloco.

Quando falamos em manipulação da história, estamos falando de que esse conflito não existe tal qual foi apresentado. A mãe de Marcelo não quis gravar para o programa porque é muito emotiva e o encontrou depois na casa de seu avô.

Dentro dessa sociedade do espetáculo as grandes emissoras acham que todas as pessoas precisam aceitar a falar com elas assim que forem convidadas e as coisas não são bem assim. Talvez por se sentirem melindrados, eles criam essas falsas narrativas que atendam seus interesses sórdidos. Eles poderiam ter dito a verdade, mas escolheram mentir porque o impacto na audiência seria melhor. “Vejam o conflito da família”, “vejam a mãe que não quer mais nem ver o filho cheio de modificações”, essas cenas vendem e convencem que para nós só existe a tragédia e a rejeição.

Marcelo BBoy. Foto: divulgação

Fico a me perguntar se os e as especialistas que analisaram as pessoas entrevistadas souberam também dessa parte oculta no programa. Talvez não, provavelmente não… E quem liga se não nós?

Marcelo ainda nos disse que foi filmado muito conteúdo positivo, por exemplo, ele tocando violino para o avô (de 92 anos) e a tia e a emoção que brotou do encontro. Mas as narrativas do afeto não importam, ironicamente em uma emissora cristã. Segundo ainda a nossa conversa com o bboy, a produtora do programa quando foi questionada sobre o que foi veiculado passou a bola para quem edita o programa. E assim ninguém assume a responsabilidade.

No caso do Casal Prado o programa também assume a função de contar a história de vida de ambos. O tempo todo fica a mensagem do desconforto e da desaprovação, reforçada por colocações do repórter e dos especialistas. Em dado momento dizem que eles encontraram “uma forma esquisita de viver”.

Conversamos com o casal sobre os combinados que foram feitos com a produção do programa e eles nos informaram que o único combinado foi filmar. Todavia, ficou a sensação de frustração por sentirem que a relação de amor e espiritualidade de ambos não foi apresentada como eles esperavam. O incomodo maior do casal foi pelos julgamentos de especialistas que em poucos minutos conseguiram traças perfis e diagnósticos sobre eles. Quando fiz a questão de como se sentiram assistindo ao programa, a resposta do casal foi que:

“De início frustados por não passar todo conteúdo de amor, espiritualidade. Modéstia à parte, um viver com condutas morais e valores até elevados. Que nós gostaríamos muito de ter passado para a sociedade em geral. Mais ao passar das horas, após o programa e refletindo, por hábito de se colocar no lugar do próximo (Rede Record), compreendi também que o tempo de cada participante era restrito. Realmente o que me incomodou bastante foram “profissionais” que são psicólogos, psiquiatras e outros, que demoram tanto em sessões com seus pacientes querer nos diagnosticar em 5 minutos. No mínimo foram precoces. E nos deixando como pessoas que não somos, ainda mais que não foi passado o conteúdo que citamos acima. Mas ficamos tranquilos porque nosso filho Aryel conseguiu em tão pouco tempo, em um pequeno fragmento da realidade da nossa família, expressar o que realmente somos: amor, família e respeito ao próximo.”

Michel e Carol Prado. Foto: divulgação

A Câmera Record fez escolhas, a Rede Record faz escolhas, não há neutralidade. As modificações corporais fazem parte da cultura e sendo assim, se sincera e genuinamente se pretendesse ali entender – ou informar sobre – o assunto com a opinião de especialistas, de fato precisariam de uma junta multidisciplinar (antropologia, sociologia, filosofia, artes e história, por exemplo), e não só médica como se deu. Se querem honestamente entender as modificações corporais escutem o que as pessoas que vivem essa cultura têm pra dizer. Caso contrário fica apenas um jogo maquiavélico de distorção, manipulação e perpetuação do ódio ao corpo (modificado).

Outras contribuições possíveis da psicologia

Pra finalizar essa discussão aqui, sem querer encerrá-la enquanto pauta, trazemos a contribuição de dois profissionais da psicologia que analisaram a situação e muito têm a nos dizer sobre o quanto a psicologia pode ser diferente e acolher pessoas ao invés de simplesmente tratá-las como coisas vazias.

Roland de Oliveira graduado em psicologia pela Universidade de São Paulo – USP e especialista em psicologia hospitalar pela Faculdade de Medicina da USP vai nos dizer que:

“Acredito que a psicologia é uma práxis fundamentada, antes de qualquer coisa, no não julgamento, acolhimento da diversidade humana e busca por autoconhecimento, compreensão de quem se é e realização de seus potenciais. Portanto, qualquer opinião emitida sem conhecimento da subjetividade de quem se apresenta e, pior ainda, atropelando a subjetividade de quem se apresenta não é considerada como um apontamento válido e, inclusive, é um apontamento danoso, que enfatiza a geração e manutenção de preconceitos, assim como a culpabilização de pessoas que estão exercendo seu direito de modificar sua estética de forma a adequar sua imagem corporal.  A psicologia tem por obrigação não fomentar sensacionalismos, interpretações rasas e ofensas gratuitas, sustentando suas colocações em dados científicos e tendo foco na promoção da autonomia psíquica, questionamento de ditames sociais e amparo de pessoas em situação de vulnerabilidade.”

O Dr. Márcio A. Neman do Nascimento, professor adjunto do curso de Psicologia da Universidade Federal de Rondonópolis (UFR/MT) e coordenador do Laboratório Esquizoanalista de Produção de Subjetividades e(m) Interseccionalidades (LEPSI), aponta em seus estudos sobre body modification, desenvolvidos desde 2010, que: “O corpo sempre esteve no epicentro das discussões morais. No binário alma versus corpo, a alma representa pureza e o corpo é denotado como lascivo, pecaminoso e sujo, que busca prazeres mundanos. Na relação mente e corpo, a primeira representa soberania em relação ao subalterno e primitivo corpo. As ciências, incluindo a Psicologia, se encontram rebuscadas, em grande parte, por julgos morais e de ódio ao corpo, tendo padronizado como “normal” aquele corpo que obedece ao capitalismo e à representação da ideologia cristã; em sentido inverso, todo corpo que busca transgredir e produzir sentidos singulares e prazerosos é tido como errado, anormal, grotesco e doentio. Se a intervenção corporal obedece às normas do capitalismo e da moral cristã, está tudo bem. No entanto, se alguém constrói um corpo dissidente, mesmo que esse corpo traga bem-estar e prazer para a pessoa, esta é tida como sofredora ou doente. É o caso das travestis, das pessoas transexuais e também dos(as) bodymods”. Em relação à atuação de alguns psicólogos, o Dr. Márcio. A. Neman do Nascimento diz: “Existe um ódio ao corpo, ao prazer e ao bem-estar e alguns psicólogos o reproduzem ao utilizar premissas ultrapassadas para produzir discursos sobre o corpo na contemporaneidade. É lamentável para a nossa categoria profissional de psicólogos(as).”

Que a discussão – atenta, viva e crítica – fique acesa em vocês.
Temos certeza que em breve – talvez ano que vem ou no outro – veremos outros programas ruins da mesma emissora e voltaremos a sentar aqui e para falar: cuidado com o fajuto cavalo de Troia. É cilada, fujam!

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