“(…) uma teoria dos anormais, uma teoria dos subalternos e uma teoria daqueles que historicamente têm sido considerados como corpos patológicos que deviam ser exterminados.”
Beatriz Preciado
Como diz Beatriz Preciado, é fundamental se fazer uma “genealogia política do corpo” que nos permita conhecer e compreender quais e como têm sido os processos de construção das “ficções políticas” – a identidade sexual, o gênero, a classe social, a raça – que nos fazem e nos constituem. Deixando claro, principalmente quando pensamos na história do corpo, que tudo aquilo que consideramos natural ou normal deve ser entendido como parte de um (longo) processo de construção social, cultural, política, isto é, histórico. Dito isso, para quem leu a nossa matéria A ruptura com o binarismo de gênero dentro da comunidade da modificação corporal já aprendeu que identidade de gênero é uma coisa, sexo biológico outra e a orientação sexual é ainda uma outra coisa. Acreditamos que tenha aprendido também que o binarismo compulsório é a ideia da divisão do gênero em apenas duas categorias: masculino e feminino, homem e mulher. Pressuposto que automaticamente implica na negação, opressão, exclusão e violência de toda a diversidade de gênero existente no mundo.
Esse texto pode ser compreendido como uma continuação daquele que acima é citado. Falamos em continuidade pois percebemos que deixamos um buraco ao nos restringirmos a mencionar apenas pessoas trans* não brasileiras. Como se fosse algo externo ao nosso país e suas peculiaridades, como se fosse distante de nós, como se aqui nesse exato momento as pessoas trans* ligadas com a modificação corporal (dentro do nosso recorte) não estivessem circulando nas massas que ocupam as nossas ruas.
Pensando em deixar a reflexão mais completa e ao mesmo tempo falar sobre quem que compõe a realidade brasileira, entrevistamos três pessoas que o binarismo compulsório não representa.
No primeiro momento pensamos em elaborar um novo texto sobre essa questão amparado nas entrevistas, mas considerando a importância do discurso dessas pessoas e de que elas sejam ouvidas através de suas próprias ideias e falas, optamos em montar uma entrevista coletiva. São três pessoas que vivem em lugares distintos do Brasil e que foram entrevistadas isoladamente.
Esta é uma conversa com pessoas reais, crianças do século XXI, as quais todo o discurso científico, médico, religioso, normatizador, regulador, opressor e controlador não contempla. Essas pessoas endossam a ideia de que é preciso pensar coletivamente em outras formas de ficções políticas: que não produzam violência, que não produzam exclusão e que não produzam opressão.
Confira abaixo o nosso bate-papo.
T. Angel: Nome, idade, cidade?
Vick: Victoria Guerrero (Vick), 21 anos. Sou de Sorocaba, interior de São Paulo.
Alex: Alex Honda, 24 anos. Sou de São Paulo.
Fran: Francine, 26 anos. Sou de São João del Rei, Minas Gerais.
T. Angel: Qual a sua identidade de gênero?
Vick: Feminina.
Alex: Indefinida.
Fran: Indefinida/negociável.
T. Angel: E sua orientação sexual?
Vick: Bisexual.
Alex: Homossexual.
Fran: Indefinida também.
T. Angel: Qual a sua formação?
Vick: Ensino superior em design de moda.
Alex: Técnica em Figurino.
Fran: Habilitada em língua inglesa, bacharel em literatura de língua inglesa e mestre em estudos literários e crítica da cultura.
T. Angel: E sua ocupação?
Vick: Trabalho com estética e estou dando início na minha loja virtual de roupas.
Alex: Artista e promoter.
Fran: Tradutora e revisora, além de eventualmente DJ, produtora de eventos, ilustradora e escritora (agora falta só entrar pro BBB).
(Vick)
T. Angel: Você acredita que as modificações corporais podem colaborar contra o binarismo, cissexismo, homo, lesbo e transfobia? Comente.
Vick: Sim, as modificações corporais falam por si só. É uma forma de usar o corpo para manifestar, transmitir e trocar informações sem muito esforço (pra quem vê), mas ao mesmo tempo que acredito que possa agregar contra o binarismo, cissexismo, homo, lesbo e transfobia, acredito que também atrapalhe, pois a maioria das pessoas são alienadas e não tem capacidade pra entender tal manifestação com o corpo, mas estamos aqui e mostraremos pra que viemos, ai de quem tiver olhos e não enxergar.
Alex: Sim. No mundo atual as modificações corporais ajudam em parte a aceitação dos gêneros na sociedade, entretanto do mesmo modo que pode ajudar, pode conflitar ainda mais a mente de algumas pessoas.
Fran: Acho que é uma questão de em que contexto elas se encontram. Há modificações que são feitas para se encaixar num determinado grupo em vez de se diferenciar, mas há aquelas que podem servir como manifestos escritos nos corpos de quem deseja lutar contra a cultura dominante. Cada um escreve sua história em seu corpo e pode optar por exibir suas crenças de maneira a questionar o status quo.
(Fran)
T. Angel: Quais as modificações corporais que você já fez?
Vick: Sou bem tatuada, parei de contar na vigésima segunda tatuagem, incluindo rosto. Já tive alargador de 10 milímetros no septo e 60 nas orelhas, hoje em dia não uso mais devido ao preconceito em excesso. Se uma trans por si só destrói o psicológico do ser humano, imaginem uma trans freak (risos), amo essa parada, adoro ser diferente da maioria das trans, pois cheguei em um nível que possuía tanta informação, e tinha tanta coisa pra falar desde muito cedo, que comecei usar meu corpo como manifesto de ideias.
Alex: Cabelos, piercings, tatuagens, scarnifications, tongue split e eyeball tattooing.
Fran: Tenho várias tatuagens, todas relativas a experiências e simbologias bastante pessoais – a última que fiz foi uma pequena montagem de uma tirinha do Laerte, com a personagem Muriel. Tenho scars dos dois lados das costelas e na região do estômago, alguns piercings, big nostrils, septo e concha alargados e também os lóbulos (um deles já foi reconstruído duas vezes, o outro apenas uma). Coloquei também silicone nos seios e fiz uma plástica para reduzir o excesso de pele nos braços.
(Alex Honda)
T. Angel: Quais pretende fazer?
Vick: Pretendo fazer mais umas 40 tatuagens, suspensão… Pretendo colocar meus alargadores de novo e quem sabe um dia bifurcar a língua ( acho o ápice)! Gostaria também de fazer a pigmentação nos olhos, porém, ainda não encontrei coragem para o mesmo.
Alex: No momento penso em fazer/terminar algumas tatuagens e futuramente pensarei em mais modificações.
Fran: Como estou prestando diversos concursos públicos e não sei até que ponto as modificações podem afetar o exame médico em relação ao cargo, meus planos agora só incluem tatuagens. Ainda tenho os braços e as costas para fechar. Posteriormente, dependendo do caminho que minha carreira tomar, gostaria de bifurcar a língua e fazer alguns implantes. E, claro, sei que farei outras plásticas no futuro.
T. Angel: Como você enxerga a comunidade da modificação corporal brasileira, especificamente no que se refere a relação com a diversidade¿
Vick: Serei franca, ok? Muitos “modificados” têm o respeito pelo próximo independente de, pois carecem do mesmo referente a sociedade em massa, ou simplesmente foram bem criados, são inteligentes, e entendem o fundamento da modificação corporal, mas muitos não têm respeito se quer pelo próximo, brigam, ofendem, agridem, fazem piadas, e usam as pessoas como chacota. Eu particularmente acho uma tremenda hipocrisia, pois se a pessoa já é modificada, fez o que quis com o corpo (por ter direito do mesmo), paga o preço que se paga por ser modificado (vocês me entendem), não vejo nexo em apontar alguém que viva da forma que ache melhor. Julgando a pessoa do que quer que seja, aí você questiona e a pessoa nem sabe por que faz isso, faltam argumentos. Mas infelizmente é isso, a body mod está aí pra todos, e temos que respeitar as diferenças, mesmo que algo não vá de acordo com seus princípios, índole e caráter. O livre arbítrio está aí para as pessoas viverem como quiserem. #aceitemquedoimenos
Alex: A grande maioria da comunidade da modificação no Brasil, apoia e respeita a diversidade. E os que se enquadram na diversidade normalmente lutam muito pela causa.
Fran: Honestamente, eu acho que falta vontade de pesquisar e de estudar a um nível que não seja tão superficial. Muito do que vejo se atém a histórias incompletas ou até equivocadas, pois as pessoas se satisfazem com o que leem na internet ou com o que ouvem em programas de TV sensacionalistas. Esse não aprofundamento leva a uma visão limitada e, o pior, uma crença de que saber um pouco já é o suficiente para se formar uma opinião. Digo isto a respeito dos que se envolvem com a modificação corporal, mas acredito que seja análogo à questão da diversidade: conhecer algo apenas superficialmente já parece ser o suficiente para se formar uma opinião e tomar um partido.
As pessoas se preocupam em julgar o outro a partir do pouco que sabem, como se tivessem preguiça de se aprofundar, de conhecer melhor a visão que é tida como subversiva.
Feliz e infelizmente, pessoas modificadas sofrem preconceito, da mesma forma que indivíduos que não se conformam com a heteronormatividade de alguma maneira, e esse ponto pode trabalhar a favor de uma união, de um diálogo compreensivo.
T. Angel: O que você diria para uma pessoa trans* e ou não binária¿
Vick: INHAAAAAAAAAAAAI? TA BOA?! (risos)
Estou brincando. Não sei o que diria ao certo, pois sempre tratei todo mundo igual. Independente de etnia, classe social, orientação sexual e essas coisitas más que o povo inventa.
Alex: Vocês são os únicos responsáveis pelo seu corpo e mente, apenas vocês e mais ninguém pode decidir seus limites, sejam com relação a mente ou a modificações, se respeitem sempre.
Fran: Informe-se. Conheça a história de nossa luta, nunca pare de buscar o conhecimento e de discutir. Fale sempre que tiver a oportunidade, pois sempre haverá alguém por perto a apoiar seu discurso e acrescentar a ele.
(Fran)
T. Angel: O que você diria para os homo, lesbo, bi e transfóbicos
Vick: Diria que o mundo é retroativo e querendo ou não a lei do retorno existe. Querem agir, monstros? Brincar de ser alguém que possua poder supremo a ponto de tirar a vida de alguém pelo simples fato de sua orientação? Façam, batam, humilhem, mas uma dica: nunca tenham filhos, pois conheço INÚMEROS casos de pais homo, lesbo, bi e transfóbicos que não deu outra: “a aberração da natureza veio pra dentro de casa”. E aí a cena muda completamente, mas a consciência de que vocês pagaram um PREÇO MUITO CARO, cedo ou tarde, deve existir. Não falo pra que tenham medo, falo porque é verdade, e isso me conforta de tal maneira que até justifica minha indiferença para pessoas que tenham tal comportamento.
Não perco tempo exigindo que me tolerem, exijo mesmo é que me respeitem! Não costumo levar desaforo pra casa e não engulo tentativas frustradas de ofensas. Fez comigo, leva! Não quero peninha de ninguém! E nem tão pouco temo pessoas que agem assim, de tanto cair aprendi a derrubar.
Alex: Existe um limite entre não gostar e discriminar, se você não gosta guarde pra você pois a discriminação é crime. E se é comigo a coisa pesa! (sou mais macho que muito homem).
Fran: Os “fóbicos” nunca se admitem “fóbicos”, então o melhor é dizer a todo mundo: nós não conhecemos a humanidade nem o corpo humano por completo. Há tanto ainda a conhecer e há tanto com o que podemos nos surpreender que acreditar em um argumento absoluto, em uma verdade definitiva que vá de encontro à diversidade, é mera ingenuidade.
Não entendi. Como uma pessoa não-binária pode ser homossexual?