Não há uma outra forma de começarmos esse texto se não for apontando e sublinhando que o gênero é uma construção social. Assim sendo, quando olhamos para os papéis e performatividades de gêneros, assistimos e entramos em contato com algo que não está fixo, mas em constante processo de transformação. Discutir e pensar o gênero é fundamental – por afetar a vida de todas as pessoas – e essa parte pediríamos que vocês guardassem com carinho.
Recentemente assistimos a frase “meninos vestem azul, meninas vestem rosa” ser proferida repetidamente como um canto dos ressentidos, fundamentalistas religiosos e fascistas que estão ocupando o poder no Brasil do presente. O canto dos malditos – nós e todas as pessoas dissidentes – traz outro tom, embala outra canção.
Por trás da ideia do azul e do rosa como marcadores de gênero, fixos e monolíticos está a proposição autoritária do controle dos corpos e subjetividades dentro de um projeto de poder. E daqui em diante entramos na discussão sobre o body piercing e o gênero. Com a intenção de provocar reflexão e, mais do que isso, ação.
Entendendo o body piercing como a prática cultural da perfuração do corpo para adorná-lo, vamos para a discussão mais básica e simples na relação com o gênero: o brinco na orelha. Por exemplo, quando uma pessoa é designada como mulher por ter nascido com uma vulva, é culturalmente aceito – e não só isso, incentivado – que se perfure as suas orelhas enquanto recém- nascida para marcar que o gênero é feminino, que aquele corpo é o de uma mulher. Dentro dessa lógica se torna ofensivo e temeroso haver confusão no gênero da criança recém nascida. Há uma urgência em se criar essa diferenciação binária de gênero nos primeiros dias de vida para atender as demandas dessa cis-heteronormatividade compulsória. É uma marcação, não só do corpo, mas de uma estrutura de poder.
Dentro dessa lógica temos uma série de problemas como a ausência de consentimento para realização de uma modificação corporal, a ausência da autonomia da pessoa, a demarcação e a imposição de um gênero que nem se quer teve tempo para se constituir. Além dos riscos (leves, moderados e graves) de ferimento e contaminação, considerando que a maioria desses procedimentos ainda usam a máquina de perfurar, embora body piercers profissionais produzam inúmeros materiais educativos alertando sobre os riscos que envolvem tal prática. Quando não, acontecem em casa sem os devidos cuidados com biossegurança.
Percebam que dentro dessa premissa de papel e performance de gênero que fundamenta a construção da nossa sociedade, o body piercing não está disponível para os homens heterossexuais e cisgêneros. A ausência desses adornos nos corpos dos homens – segundo essa lógica – é o que sustenta a ideia do macho, da virilidade e do que é ser “homem de verdade”.
Quando nos anos 80 os homens começam a perfurar suas orelhas para o uso dos brincos, automaticamente a relação que se construiu era com a perda da masculinidade, com o desvio da heterossexualidade compulsória, com a marginalidade, ou seja, com tudo aquilo que – dentro desse esquema – não era bom. Nunca foi uma situação tranquila e pacífica dentro da sociedade como estava configurada, relatos não faltam.
A relação mais forte que se construiu naquele momento foi a de que um homem que perfurava as orelhas, assinava atestando que era homossexual ou que queria ser mulher, em ambas as comparações, dentro de um viés pejorativo. Entendam que estamos falando de uma momento no tempo em que a homossexualidade e a transexualidade estavam dentro das categorias de doenças da Organização Mundial de Saúde – OMS e em conjunto é o momento da crise do HIV/AIDs chamada como o “câncer gay” (sic). Percebam a proximidade da discriminação com as modificações corporais com a homo e transfobia. Percebam, estamos dizendo proximidade e não afirmando que são as mesmas coisas.
A década de 90 no Brasil traz com ela todo um repertório de novas práticas, experiências e ações que vão intencionalmente subverter as lógicas hegemônicas, inclusive das delimitações rígidas sobre os papéis de gênero. Dentro delas podemos citar o body piercing como um fenômeno cultural atravessado/atravessando pelas tribos urbanas, vida noturna, cultura pop, tecnologia e a chegada da internet. Sei que hoje é quase impossível imaginar a vida sem a internet, mas historicamente falando é algo muito, muito recente.
Nesse sentido, os anos 90 no Brasil, a ideia de perfurar outras partes do corpo que não apenas os lóbulos das orelhas, era algo novo por si. Quando falamos de “algo novo”, queremos dizer no sentido técnico e tecnológico do que conhecemos. Não podemos jamais esquecer ou desconsiderar o histórico da perfuração corporal que temos que é anterior ao processo de colonização.
Assim sendo, se a gente pode falar sobre uma configuração de divisão de perfurações com uma noção generificada, isto é, dividida dentro de uma lógica binária de gênero (homem, mulher; masculino, feminino), ela se manifestava enquanto um barulhento ruído dentro do sistema cis-heteronormativo com seus papéis fixos e rígidos de gênero, principalmente pensando aqui a figura do homem heterossexual e cisgênero. Não exageramos em dizer que, na década de 90 e começo do ano 2.000, a manifestação do body piercing – estivesse ele onde fosse no corpo – rompia com a lógica cis-heteronormativa do que um homem pode fazer com o seu corpo ou do que é um homem.
Nesse momento – e infelizmente ainda hoje presente – se constituiu a relação entre body piercing e o “coisa de mulherzinha” (sic), “coisa de viado” (sic) e “coisa de marginal” (sic). Tudo isso perpassa pela discussão de gênero, percebem?
Homens que decidiam perfurar os seus corpos assumiam o compromisso – conscientes ou não – de desafiar a ordem das coisas naquele momento no tempo. Embora o apelo estético fosse forte, perceba que essas modificações impactaram profundamente na cultura em um país que estava no processo de soltura reacionária e conservadora, sequela colonial e de anos imersos em um sistema ditatorial. O corpo – e o que fazemos com ele – é político!
Há também as curiosidades que preenchem essas reflexões, como exemplo, o piercing no umbigo. A body piercer Zuba afirma que na década de 90 quem mais usava o piercing no umbigo eram os homens cisgêneros e heterossexuais.
Zuba contou que no começo de sua carreira, nos anos 90, que o seu maior público era composto de homens (RUIZ, 2010, p. 45), as mulheres pouco frequentavam os estúdios sem desafiar a moral e os bons costumes da época. Os motoqueiros – grupo que a profissional atendia – buscavam perfurar orelhas, mamilos e, pasmem, o umbigo. No vídeo abaixo de Singularis (2015), a profissional repete essa sua análise sobre os usos do piercing e sua relação com o gênero.
Como a cultura e o gênero não são fixos, assistimos uma transformação em relação aos usos do body piercing no umbigo. Se o body piercing antes era ligado com a noção daquilo que é mau sintomaticamente estava ligado também com a representação daquilo que é feio e grotesco.
Todavia, temos a hipótese de que o piercing no umbigo foi o primeiro a ser assimilado pela cultura dominante, caindo em um curto espaço de tempo nos gostos populares e recebendo o status de belo. E dentro da configuração da sociedade dos anos 90, a noção de beleza era ligado ao feminino. Assistimos então o piercing no umbigo ser praticado em larga escala por mulheres, como símbolo de feminilidade, sensualidade e beleza.
Esse processo foi impulsionado no Brasil por outro fenômeno no final dos anos 90 e começo dos anos 2.000, estamos falando do sucesso dos grupos de axé e suas dançarinas, com destaque para Carla Perez do É o Tchan, que foi uma das primeiras a perfurar o umbigo. Além dos grupos de axé, tínhamos as ajudantes de palco do Programa H do Luciano Huck, as personagens da Tiazinha (Suzana Alves) e da Feiticeira (Joana Prado) se tornaram famosas e ícones da sensualidade e beleza, ambas com piercing no umbigo. No exterior a diva pop teen Britney Spears também perfurou o seu umbigo e influencia uma legião de fãs mundo afora. Além dela, a cantora Gwen Stefani (ex-No Doubt), a atriz Megan Fox, a modelo Naomi Campbell e até o ícone máximo da indústria da beleza da época, Gisele Bündchen, se rendeu ao adorno.
Uma análise sobre objetificação da mulher cabe no parágrafo acima e deixamos o apontamento para vocês não perderem a crítica e o olhar atento. Essa também é uma discussão sobre gênero, fundamental que seja feita porque cria um impacto profundo e insistente dentro da comunidade da modificação corporal.
Como um efeito dominó essas mulheres que mencionamos acima passaram a influenciar umas as outras (e tantas outras) e dentro de uma sociedade que é regida por normas rígidas de gênero, não demorou para que culturalmente fixassem o piercing no umbigo como sendo algo natural do universo feminino. Nunca foi, uma vez que o gênero não é um dado natural, repetindo, é uma construção.
Essa noção de que o “body piercing no umbigo é para meninas” se manifesta na mesma lógica de que o “rosa é para as meninas” e ambas não se sustentam com a realidade quando olhamos para a história e os seus processos. É um imaginário que se construiu de uma forma rápida e se solidificou e, obviamente, que reverbera em violências (micro e macro) nas pessoas que desafiam essa lógica, sustentada por uma premissa equivocada. Algo que ecoa ainda hoje, infelizmente.
Recentemente o jovem Rick Oliveira postou no Facebook uma fotografia em que mostra o seu umbigo perfurado e relata críticas e opressão. Em suas próprias palavras:
“Quantas críticas eu recebi, até da própria família mas eu acho que piercing não tem sexualidade. Eu coloquei o piercing no umbigo. Está no corpo de um homem SIM!!!!
Obs.: Tá com vontade de fazer? Faz. Vamos ser criticados sempre… Criticado sim e feliz também.” (sic)
Você pode imaginar que o depoimento do jovem é exagerado e até sem fundamento, só que não. A publicação se tornou viral com milhares de comentários e compartilhamentos e com uma breve passada de olhos você consegue capturar diversos comentário ofensivos e depreciativos. A homofobia recreativa se manifesta muitas vezes nas risadas e comentários. Isso nos mostra o quanto ainda essa visão binária de gênero dentro de uma lógica cis-heteronormativa é forte. Embora já tenhamos passado das duas décadas de que o body piercing no umbigo esteja entre nós.
O body piercer Rodrigo Buga de São Paulo fez uma publicação no Instagram, em Setembro de 2019 dizendo que “piercing não tem gênero, cor, raça e nem regras. É pra todos”. A Millennium Piercing & Co. na campanha United by Piercing de 2020 afirma que “o piercing é sem fronteiras, idade, gostos“. E continua “o piercing é diversidade“.
Essas manifestações de profissionais do que se tornou a indústria do body piercing marcam agora a construção de uma outra narrativa em relação aos usos do adorno, em ambos os casos com conhecimento de causa dos sistemas de opressão que nos regimentam e propondo ruptura. É um novo movimento que passa pelo espaço da educação e pelo convite para o diálogo, reflexão e ação.
Para concluir, podemos afirmar que o body piercing – enquanto técnica e prática cultural – não tem gênero. É a sociedade que aplica essa atribuição, muitas vezes querendo fazer o manutenção de sistemas ultrapassados e que não cabem mais em nosso tempo. Na realidade nunca couberam e como podemos ver sempre estiveram sendo tensionados.
Cabe a nós decidir se queremos seguir agarradas em sistemas de crenças e valores que violentam corpos e subjetividades ou se queremos desconstruir o que nos fazem engolir como verdades absolutas e fixas e viver outros contextos. Nós do FRRRKguys estamos no grupo das pessoas pessoas que preferem desconstruir, tensionar, desafiar e embaralhar as regras do jogo. Ecoamos o canto dos e das malditas.
Nada é natural, tudo é construção.