A Rede Record e toda violência de seu discurso sobre o corpo modificado

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Foto: reprodução / Twitter

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Dentro do esquema que denominei como sendo mídia genérica, é muito claro que uma das corporações mais nocivas para a história da modificação corporal brasileira é a Rede Record de Televisão. Não vou entrar no mérito de que desde fins da década de 80 ela foi comprada pelo líder religioso Edir Macedo, fundador da Igreja Universal do Reino de Deus. Todavia, ter consciência e principalmente clareza disto é fundamental para que possamos compreender melhor a situação toda, em outras palavras, as ideologias que arquitetam a respectiva corporação.

Tenho tentado ponderar o meu discurso sobre essa imprensa leviana, que tem tratado as pessoas e profissionais das modificações corporais como cidadãos e cidadãs de terceira categoria. Essa mesma imprensa que tem colaborado com a manutenção de estigmas antigos e com a criação de tantos outros novos preconceitos, através de um discurso extremamente conservador, normatizante, violento, autoritário, patologizante e desumanizador. Dessa vez eu não pretendo usar meias palavras, não aceito mais me ver retratado por esses veículos de comunicação dessa forma completamente distorcida e estereotipada, como mera aberração de um circo de horrores. Não aceito mais ver amigas, amigos e principalmente pessoas que admiro e que já não estão vivas mais, sendo humilhadas por esses veículos de comunicação. Essa imprensa torpe que nos pergunta tanto sobre a questão da dor, não economiza esforços para reduzir a nossa imagem e vida em coisa qualquer e isso dói. O preconceito disparado e reforçado pelas incontáveis matérias da Rede Record é realmente algo que causa dor.

Ontem na parte da noite o programa Repórter Record Investigação exibiu uma matéria que explorava a tragédia vivida pelo ex-ministro Odacir Klein e a morte de seu filho, Felipe Klein. Que inclusive escrevemos uma pequena homenagem AQUI no final do ano passado.

Uma das chamadas dizia que o “Ex-ministro de Estado quebra o silêncio sobre alcoolismo e o suicídio do filho”. O que não é de todo verdade, Odacir Klein já falou sobre isso em uma entrevista para a Revisto Istoé em 2009 e, além disso, no mesmo ano publicou o livro “Conversando com os netos” pela Editora Berthier. No livro ele fala principalmente sobre o alcoolismo, reservando algumas poucas linhas para o Felipe no epílogo. Bem, não sei qual a concepção de silêncio que a equipe da Record utilizou, mas me parece que não é o caso. Inclusive, é só um erro dos tantos outros que eles cometem em sequência. Mais certo seria dizer que a matéria em si, exibida ontem , seja um gigantesco equívoco, se me permitem a franqueza.

Antes que alguém comece a dizer, teorizar ou relacionar as modificações corporais com o suicídio – como é inclusive comum acontecer dentro da própria comunidade da modificação do corpo em discursos mais conservadores – eu digo e peço muita calma com esse texto. Eu poderia listar umas centenas de pessoas que se suicidaram e que não tinham nem ao  menos uma tatuagem, o que desbancaria essa teoria que me parece ineficiente. Com isso quero dizer que tenho a sensação de que a relação entre modificações do corpo e suicídio está quase sempre carregada de preconceito. É o caminho mais fácil de uma análise fria e rasa que ignora inclusive tantos outros fatores que podem levar uma pessoa a se suicidar. É verdade que existe uma porcentagem significante de suicídio em minorias, por exemplo das pessoas LGBT, mas que me leva a pensar diretamente em como a sociedade joga forçosa e violentamente para as margens e latrinas todas as pessoas que não cabem nas caixas das normalidades da vida. Se podemos levantar hipóteses sobre suicídios, talvez esse seria um interessante ponto de partida, digo, a exclusão social e segregação espacial das pessoas que escapam das regras, das normas e das convenções. É um adendo em que me prolonguei, mas é importante.

Seguindo agora com a análise da matéria exibida na Record. No momento em que o programa estava sendo exibido, algumas pessoas me escreveram lamentando o que se passava. Veja bem, não precisa ser um gênio ou pesquisar as modificações corporais para saber que a combinação (Rede Record + Modificações Corporais) é sempre improdutiva. Eu não assisto televisão muito frequentemente, mas tratando especificamente a Record, além de recusar todos os convites que recebi da emissora, não assisto a sua programação como forma de boicote.

Vi ontem pelo Twitter que todas as chamadas para o programa exploravam a imagem de Felipe Klein e das pessoas que fazem modificação corporal. Entendo que a pauta pretendia explorar o drama e vender a tragédia do Odacir Klein, mas é na memória de Felipe Klein que eles pisotearam. De um lado se falava da redenção de um pai e do outro a desumanização de um filho, que nem sequer tem o direito de resposta, que nem quer está vivo mais. Impossível não se entristecer. Triste perceber que mesmo uma década depois essa imprensa vil segue falando sobre as modificações corporais como há 30, 20 anos. Como diria Isaac Asimovo aspecto mais triste da vida de hoje é que a ciência ganha em conhecimento mais rapidamente que a sociedade em sabedoria” e ele já dizia isso há no mínimo três décadas.

Hoje foi divulgado no website da emissora um vídeo dos bastidores do programa e obviamente que um outro com a matéria completa. Trataremos primeiramente o vídeo dos bastidores. Neste a equipe conta um pouco da experiência que tiveram com a produção da matéria. A produtora Laura Ferla afirma que a maior dificuldade foi convencer o Odacir Klein a abrir sua vida. O que me leva crer que trabalhar em uma matéria que reforça todo o tipo de estigma com as pessoas e profissionais das modificações corporais, foi tudo bem. Fico pensando na não dificuldade da produtora em tocar na memória de uma pessoa que morreu com a frieza de quem fala de um personagem de uma ficção qualquer.

Na sequência a repórter Heleine Heringer vai exaltar a franqueza de Odacir Klein ao responder todas as questões. Diz também que a pauta tem a missão de levar uma mensagem de um pai que passou por dramas. Ao que me parece, mesmo que a mensagem deturpe a imagem do filho morto e o trate a maior parte do tempo como uma aberração. Se a missão era essa, espero que estejam satisfeitos com os resultados.

Já o editor Guilherme Zwetsch diz que o Felipetem um perfil muito interessante” e que a produção “conseguiu fazer ele aparecer 11 anos depois de uma tragédia”. Realmente, e convenhamos que a produção fez isso da pior forma possível, transformou uma tragédia em uma tragédia épica com a tamanha falta de respeito com a memória de Felipe Klein e das pessoas que o amavam. A melhor palavra para definir a reportagem seria tragédia. A Record conseguiu ser muito mais leviana e rude do que o jornalista Renan Antunes de Oliveira, vencedor do prêmio Esso de Jornalismo por uma matéria que beira o absurdo da violência e desrespeito ao tratar o caso de Felipe.

Faço questão de citar os nomes dos profissionais envolvidos na elaboração dessas matérias, pois eles são responsáveis diretos por toda reafirmação de um discurso violento que nos desumaniza histórica e simbolicamente, o discurso que nos joga na margem que falei acima. Vocês produzem esses absurdos de materiais e depois voltam para o conforto de suas residências e vidas de classe média e somos nós que recebemos as pedras nas ruas. Somos nós os apedrejados e não vocês, mas ainda assim eu prefiro estar com as pedras do que com os louros de quem colabora com a desumanização de pessoas. Eu odiaria estar na pele de vocês.
Assistindo ao programa hoje milhões de perguntas inundam a minha cabeça e fico com uma mistura de vergonha, tristeza e ojeriza. De onde eles tiraram a ideia de “automutilação com ferro de passar roupa”? Como eles podem afirmar com tamanha convicção que as únicas motivações de Felipe Klein em se modificar eram pela relação com o pai? Porque um pai aceita expor a imagem do filho morto de uma maneira tão tendenciosa e sensacionalista? Porque os amigos de Felipe Klein aceitaram participar de produções do tipo?

Sobre a reportagem em si, o jornalista Domingos Meirelles lê um texto pronto cheio de senso comum, em que o preconceito é declarado e vomitado. Neste sentido, faz coro com o restante citado acima. Afirma que as modificações corporais de Felipe fossem apenas um pedido de socorro ao pai e uma forma de chamar a atenção. O que me parece arbitrário e completamente questionável uma vez que a única pessoa que poderia nos dizer isso seria o próprio Felipe Klein. No mais, todo resto é hipótese, achismo e teoria.

Quando Domingos Meirelles afirma que a medida em que “ele se afastava do pai se aproximava da dor” é uma negação ao discurso do próprio Odacir Klein, que afirma que vivia em campanhas, viagens e bebidas e que era ausente. Isto é, eles articulam e interpretam a situação com base em suas visões de mundo, carregadas de julgamento moral.

A sensação que fico é que a Record ao repetidamente explorar a imagem de Felipe Klein, sugere que a tragédia está mais em suas escolhas com o seu corpo, do que com o restante dos fatores. O que conta inclusive com o atropelamento e a morte de um pedreiro em 1996. Que não tem relação alguma com o Felipe, e sim diretamente com o alcoolismo de Odacir Klein. Mas veja bem, quem mesmo é que liga para a morte de um pedreiro? Digo, até as tragédias são seletivas e parece que algumas são mais trágicas que outras. Mas deixe a Record falando das modificações corporais.

O que chama a minha atenção – no sentido positivo – é a não presença e o silêncio dos irmãos, sobrinhos e demais amigas e amigos de Felipe Klein. Principalmente quando nas vésperas da veiculação da matéria da Record, eu tenha recebido uma mensagem de agradecimento de sua sobrinha, um gesto muito pequeno e que me parece muito maior agora. A não presença e o silêncio dessas pessoas me diz muito mais sobre respeito, amor e saudade, do que todo o resto.

Para concluir esse texto e que também é um desabafo, gostaria de dizer que adoraria não ter que escrever essas linhas, mas a ofensa foi tamanha, que não falar e não me manifestar diante dessa crueldade, é ser omisso e cumplice da situação e é algo que eu não ficaria em paz em ser. Por fim, de tudo isso a única coisa que concordamos é que Felipe Klein hoje é uma inspiração, para nós sem dúvida alguma é o que ele é.
Oxalá se esse triste episódio não se repetisse mais.

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Referências

KLEIN, Odacir. Conversando com os netos. Passo Fundo, Editora Berthier, 2009.

Odacir Klein: O álcool me causou ressaca moral
http://www.istoe.com.br/assuntos/entrevista/detalhe/33550_O+ALCOOL+ME+CAUSOU+RESSACA+MORAL

A tragédia de Felipe Klein
http://jornalja.com.br/a-tragedia-de-felipe-klein/

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