Quem nos lê frequentemente já deve ter notado que estamos fazendo uma série de reflexões acerca das modificações corporais na atualidade.
Em um de nossos textos, que você pode ler clicando AQUI, falamos sobre o movimento de pessoas que estavam indo contra as práticas das chamadas modificações corporais extremas. Movimento este que estava partindo do próprio meio da comunidade da modificação corporal brasileira e que, ao fim e ao cabo, deixam todas as práticas (extremas ou não) suscetíveis a interdições de pessoas de fora, no caso, os políticos.
Uma ou outra pessoa poderia até achar que estávamos exagerando ou ficando malucos ao falar tanto de modificação corporal e política. Para essas pessoas queremos dizer duas coisas. A primeira é que se faz importante ter em mente o crescimento da bancada evangélica fundamentalista no governo brasileiro e automaticamente suas posições conservadoras, que caminham junto com as ideias de pessoas da direita e inclusive as de extrema direita.
A outra coisa que se faz importante mencionar é para que tenhamos noção do risco que corremos, que não é apenas virtual. Vamos aqui tomar um pouco do tempo, para apresentar a situação.
A Senadora republicana Missy Irvin de Mountain View, Arkansas, havia conseguido aprovar em março deste ano no senado norte-americano um projeto de lei que pedia mais regulação acerca das modificações corporais, especialmente escarificações e implantes. Por regulação, queremos dizer controle, limitação, dominação com base em um discurso normativo sobre limites e que basicamente cerceiam a liberdade de expressão e subjetividade das pessoas. Como bem abre em 20 de Agosto a matéria do The Inquisitr: “adeus liberdade de expressão, olá projeto de lei do Senado de Arkansas que proíbe modificações corporais não tradicionais e implantes na pele”. Você pode a matéria completa (em inglês) CLICANDO AQUI.
O projeto foi aprovado no senado com 26 votos a favor e apenas 4 contra e colocamos esse dado apenas como (mais um) alerta. Ah! Apenas para complementar a apresentação da senadora (e o alerta), vale colocar que ela é pro-life, pro-family e sobre imigração ela diz que “a lei é a lei”.
O projeto de lei 387 pode ser visto AQUI com o título “An act to limit body art procedures; and for other purposes” (Um ato para limitar procedimentos de modificação corporal; e por outros propósitos). Se faz importante também que seja visto AQUI o projeto de lei 388 com o título “An act to amend various provisions concerning body artists, o clarify the nature and penalties for violations of laws and rules regarding body artists; and for other purposes”.
Apresentados ambos os projetos, vamos nos adiantar.
O discurso de Missy Irvin dizia que as modificações corporais eram perigosas não apenas para quem passava pelos procedimentos, mas para toda a comunidade. Sua justificativa e premissa higienista era a de que os profissionais não eram qualificados de realizar os procedimentos por questões sanitárias. O site Examiner, que nos traz o dado anterior, completa que a senadora se utilizou da história da escarificação como motivo para proibi-las:
“Uma das estudantes da minha escola era de uma tribo africana, e ouvir suas histórias sobre circuncisão feminina era muito angustiante.”
A matéria toda pode ser lida (em inglês) AQUI.
A senadora se equivoca e ao mesmo tempo apresenta toda a sua ignorância sobre as práticas das modificações corporais. Uma circuncisão não é uma escarificação e tão pouco é um implante. A apropriação histórica que ela diz fazer é absolutamente inapropriada.
Um adendo importante, a verdade é que o projeto de lei, assim como as matérias que abordam o fato, falam sobre body art, mas para nós por motivos de definições terminológicas, tratamos a questão como modificações corporais. Essa nossa “livre tradução” ou adequação se dá por nossa posição e entendimento de que a modificação corporal não seja unicamente arte, como já explanamos AQUI anteriormente.
Importante frisar que mesmo a tatuagem não escapou do projeto da senadora, o texto pedia que qualquer situação relacionada aos menores de tatuagem sendo tatuados, deveriam ser denunciadas diretamente para o departamento de saúde do Estado. Em Arkansas, assim como aqui, é preciso ser maior de 18 anos para se fazer uma tatuagem e maior de 16 anos para se fazer uma cobertura de tattoo, contradição pouca é bobagem.
Muitas problematizações e um olhar crítico deve ser colocado sobre a situação.
A matéria do The Inquisitr levanta também uma questão pertinente e que caminha de acordo com as nossas últimas reflexões: não seríamos nós os responsáveis em fazer as nossas próprias escolhas sobre os nossos próprios corpos? O Examiner endossa essas questões, seria constitucional tal projeto de lei ou apenas mais uma forma do Estado ter controle sobre os nossos corpo? Ainda a mesma matéria toca em um ponto crucial, com toda essa proibição e regulamentação, as pessoas deixariam de visitar os estúdios que seguem as regulamentações sanitárias e passariam a frequentar lugares inadequados, clandestinos ou até mesmo fazendo em casa – possivelmente sem acompanhamento profissional adequado – aumentando e criando riscos em potencial. Nós sabemos que isso é uma realidade, tivemos essa experiência na prática quando Campos Machado aprovou a lei que proíbe piercing e tatuagem em menores de idade, como já falamos AQUI também.
Que fique claro, as pessoas não vão parar de fazer aquilo que elas querem com os seus corpos por conta do que o Estado ou demais instituições dizem. Cientes disso, o melhor que podemos fazer é gerar ou colaborar com a construção de um aparato progressista e que respeite de fato a liberdade individual de cada um, para que esses procedimentos aconteçam de uma forma segura para todos. Se possível, desvinculado do Estado, da Igreja e sem a necessidade de institucionalizações alguma, mas ao mesmo tempo, possibilitando que os profissionais estejam conscientes da importância de uma formação multidisciplinar. ética, segura e de qualidade. Isso é possível haja vista a quantidade de excelentes estúdios e profissionais que temos no Brasil e que já estão dentro desse esquema que desenhamos.
Apenas para reforçar essa nossa ideia gostaríamos de citar ou se fazer lembrar de duas situações reais e que integra o retrato do controle do corpo no Brasil. A primeira é a quantidade de mulheres (pobres) que morrem anualmente no Brasil pela realização do procedimento em clínicas clandestinas, ilegais… Estima-se que sejam feitos 1 milhão de abortos por ano, a cada dois dias temos uma morte. Na América Latina 95% são procedimentos inseguros. Para ler mais sobre isso CLIQUE AQUI.
A segunda situação é a insuficiência do sistema de saúde (citamos apenas este, mas a discussão é mais ampla) para atender as pessoas trans* que precisam de acompanhamento médico para suas respectivas adequações de gênero. Lembrem-se das pessoas trans* (pobres) que injetam silicone industrial em seus corpos, tomam hormônios aleatoriamente ou até mesmo aquelas que mutilam seus corpos… Todas essas situações podem levar ao óbito e estão de fato fazendo inúmeras vítimas.
Alterações institucionais e no Estado em relação à esses processos obviamente que estão acontecendo, com mudanças lentas e que estão longe de atender as reais necessidades urgentes dessas pessoas. Pois essas necessidades fogem do que se convencionou como regra e padrão em uma sociedade cissexista, machista, sexista, classista, cristã e racista. Sobre a questão das pessoas trans* indicamos a leitura desse texto AQUI.
Gostaríamos de frisar que essas leis e regulamentações sobre o corpo da mulher e das pessoas trans* afetam principalmente as camadas mais pobres e isso não é só Brasil. Inserimos essas duas situações como forma de ilustrar o que é de fato o Estado controlando os nossos corpos e o papel das instituições nesse esquema.
Seguindo com a discussão do projeto de lei norte-americano, uma matéria do MSNBC do dia 26 de Agosto aparentemente tenta desviar a atenção da questão, menciona que houve um mal entendido nas redes sociais e mídias alternativas e que o senado de Arkansas não tentou proibir as modificações corporais. Bem, se “to limit” pode indicar limitar, restringir, confinar, o que será mesmo que projeto de lei tratava? O texto na íntegra (em inglês) pode ser lido AQUI.
A matéria diz ainda – inclusive reforçando que é um exemplo a ser seguido – que o projeto de lei foi revisto e atualizado pela senadora em conjunto com profissionais das modificações corporais. Uma das falas de Irvin diz que os profissionais da modificação corporal “são artistas” e tão logo são “as pessoas dela”, uma vez que a mesma tem formação em Dança. Discordamos integralmente da colocação da senadora, repetimos, nem todo body modifier é um artista e nem toda modificação corporal pode ser considerada arte. A prática de se alterar o corpo (dentro do nosso recorte) é um fenômeno sócio-cultural secular e não precisa da arte para se legitimas, já está posta de forma indelével na história, basta olhar para trás.
Ainda tratando a matéria do MSNBC, como dissemos, ela apresenta alguns profissionais do meio que participaram da revisão do projeto, a exemplo da body piercer e profissional da escarificação, Misty Forsberg, que escreveu uma carta aberta quando o projeto passou a primeira vez no senado e depois trabalhou na revisão toda junto com Irvin. A derrubada das proibições foi considera uma vitória do ativismo dos cidadãos de Arkansas e nós ficamos aqui refletindo, comemorar o que exatamente? A revisão retirou toda proibição sobre a escarificação, fez alguns ajustes sobre a questão do piercing e isso é realmente positivo. No entanto, os implantes continuaram proibidos de serem realizados em estúdios após a revisão em comum acordo entre senadora, profissionais e entusiastas. Ainda que a federação de cirurgiões plásticos já tivessem liberado o implante para os body modifiers profissionais, o projeto afirma que apenas médicos podem fazer o procedimento por lá. Comemorar o que e por quê?
Ao que parece, mesmo após a revisão a proposta não agradou de forma geral. Em sua fanpage no Facebook, no dia 22 de Agosto a senadora desabafou. Reclamou que ninguém leu o projeto de lei, que a única coisa banida foi o implante e se auto-adula ao dizer que a associação de modificação corporal de Arkansas a ajudou na revisão do processo e essa parte ela destaca com capslock. Sobre essa união entre body modifiers e Senadora – tão logo o Estado – nos faz pensar e muito.
Gostaríamos de finalizar a reflexão com mais uma colocação do MSNBC:
“Ao invés de ver o projeto de lei como uma repressão, a maioria dos profissionais da modificação corporal do estado estão satisfeitos com a legislação.”
Não sei vocês, mas isso me causou mais desconforto do que qualquer outra sensação. Ficou firmado entre eles que de fato os implantes são errados, que não são bem feitos pelos body modifiers e que são um risco. Será que esses mesmos profissionais de fato não irão fazer esses procedimentos atrás da cortina? Será que o discurso vai corresponder a prática? Será?
Desconforto ampliado também talvez por sentir que isso possa acontecer um dia por aqui e pensando que hoje a gente tem na Comissão dos Direitos Humanos uma pessoa como o Deputado e Pastor Marcos Feliciano, temos a ligeira impressão que caso isso venha acontecer no Brasil, a coisa tem tudo para ir para um caminho muito mais complexo.
Pode soar estranha essa frase, mas benditos sejam os insatisfeitos de Arkansas, nós fazemos coro com esse mal estar deles e não, não acreditamos que tenha muito para se comemorar.
3 thoughts on “Mais algumas novas reflexões sobre política e modificação corporal”