American Mary

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Fotos: reprodução
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“I quit med school today, that shouldn’t come as a surprise to you. I’m changing specialties Dr. Grant. Have you ever heard of body modification?”Mary Mason

Temos uma teoria ou desconfiança de que os melhores filmes sobre body modification, são aqueles que não são necessariamente sobre essa temática. American Mary (2012) é mais um desses filmes que deixa a desejar, para não dizer que se trata de um caso perdido por completo, apesar de suas personagens intrigantes e bela fotografia.

American Mary é um longa metragem de horror canadense escrito e dirigido por Jen Soska e Sylvia Soska, que inclusive, também participam como personagens da trama. A filmagem aconteceu em Vancouver, ainda, sendo produzido e distribuído pela IndustryWorks Pictures.

Analisando a produção, é um filme que contou com pouco efeito especial, optou-se em trabalhar com a prática e a “vida real” da comunidade body mods. Pessoas e alguns registros reais da comunidade da modificação corporal colaboram com a composição do filme. O body modifier canadense Russ Foxx é uma das figuras que podemos ver no desenrolar da trama. Falando ainda das personagens, o papel de Mary foi escrito pelas irmãs Soska especificamente para a atriz Katharine Isabelle.

tumblr_mh9h32WI3F1ry6svwo1_1280(O body modifier Russ Foxx em cena)

O lançamento de American Mary aconteceu no London Frightfest Film Festival em 27 de Agosto de 2012. Teve uma distribuição limitada nos cinemas dos Estados Unidos em 31 de Maio de 2013 e sequencialmente se espalhou para distribuição em DVD pela Universal Pictures UK e online também. Apesar do Brasil ter ficado de fora da agenda de circulação do longa o mesmo pode ser visto online com legenda em português.

American Mary apresenta a trajetória de uma estudante de medicina, Mary Mason, que se prepara para se tornar uma cirurgiã. No entanto, a sua vida financeira está em pleno declínio. Afim de melhorar essa situação, a estudante busca emprego em um clube underground de striptease. Antes mesmo da análise de seus atributos físicos, currículo e a “entrevista” terminarem, ela é chamada para salvar a vida de um homem que havia sido torturado pela equipe do proprietário do clube. Ela faz o “serviço sujo” e retorna para casa em pânico com a vivência.

Frequentemente as cenas são musicadas por Ave Maria de Bach. A sensação que vem com a trilha sonora é a de que estamos diante de uma tragédia eminente de uma santa da contracultura e seu martírio pós moderno: dinheiro, exploração, abuso, violência e poder.

Retornando ao roteiro, alguns dias se passam e Mary passa a receber ligações de Beatress, uma stripper do clube em que havia acontecido o primeiro “trabalho sujo” da estudante. Esses contatos aos poucos vão guiando o restante da estória.

AmericanMary2(Beatress Johnson interpretada por Tristan Risk)

Beatress alterou o seu corpo através de procedimentos cirúrgicos para ficar parecida com a Betty Boop. Ela busca encontrar na estudante uma pessoa que possa realizar futuros procedimentos nela e em sua amiga, em troca de uma boa quantia de dinheiro. A relação das duas personagens aos poucos vai introduzindo a estudante de medicina na comunidade da modificação corporal. Ainda que a priori contra a sua vontade, expressa em seu semblante enojado.

_DSC0415(As personagens Beatress e Ruby Realgirl)

É interessante prestar atenção no discurso de Beatress, principalmente quando ela diz que os procedimentos que ela busca não são fáceis de se realizar com médicos convencionais. A gente recaí aqui na questão do que é considerado normal e anormal no âmbito da alteração do corpo e principalmente no quanto é forte o discurso que tenta patologizar as pessoas da comunidade body mods. Nesse sentido, o filme ajuda pouco.  A gente também é levado a pensar no quanto a subjetividade das pessoas é controlada por um padrão estético normatizador (e ao mesmo tempo excludente, pois nem todos os corpos são aceitos na sociedade) e ao mesmo tempo guiado por uma ética conservadora e puritana. Um outro ponto importante para se pensar, principalmente no momento atual, é a questão da tentativa de se marginalizar essas práticas e a subsequente forçosa criação de pessoas e lugares clandestinos e toda sua gama de riscos que surgem através dessa situação. O surgimento do clandestino é forçada pelo discurso normatizador, higienista, opressor e por um aparato de leis criadas pelo Estado para controlar o nosso corpo. O filme aponta isso, obviamente que exagera, trabalha com estereótipos e clichês, no entanto, essa questão realmente se faz importante longas reflexões.

Gradativamente a gente assiste a passagem do asco de Mary à sua completa dedicação – ainda que psicótica- nas body modifications. A entrada de Mary no meio possibilita uma visível melhora em sua situação financeira. Apesar das frequentes caras de nojo da personagem ao saber das pessoas e procedimentos que se realizam no meio da modificação do corpo. É quase possível ver dentro da sua mente o texto “essa gente é maluca”. Para isso basta relembrarmos a cena em que Mary realiza os procedimentos de remoção de mamilos e lábios vaginais (com fechamento da vagina) na Ruby Realgirl, personagem que deseja se tornar uma boneca humana.

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images(Procedimentos de remoção de mamilos, lábios vaginais e sutura da vagina)

Por sua vez, merecendo aqui o destaque, o discurso de Ruby é bastante forte. A desenhista de moda fala em como ela se utiliza da modificação do corpo para ir contra a coisificação do corpo da mulher, sua degradação, sua comercialização e sua transformação em objeto sexual. Apesar disso, nem mesmo o filme conseguiu escapar dessa reprodução, a personagem central é frequentemente colocada nessa situação de mulher-coisa e fetichizada. Foi construída uma personagem de mulher fatal, quase serial killer, sexy e que frequentemente é posta em roupas sensuais e erotizadas. O discurso ficou apenas nas palavras da boneca humana, uma pena.

AMERICAN_MARY_Szenenbild_30(A personagem Ruby Realgirl)

As modificações corporais vão acontecendo clandestinamente e sendo conciliada com a residência da jovem estudante. O limite trágico e o fim do sonho em se tornar uma cirurgiã é interrompido após Mary ter sido drogada e estuprada por seu orientador, Dr. Grant. Com o consentimento de toda classe médica presente.

A situação exposta com o estupro sugere uma reflexão sobre julgar o livro pela capa. Se de um lado temos os personagens da comunidade body mods, isto é, os ditos anormais que buscam se realizar, tentando adequar os seus corpos como se sentem por dentro (e não com padrões e regras externas), falando de subjetividades, política, poéticas e afetos singulares, do outro lado temos a “sociedade normal” representa pelos grandes cirurgiões da residência. É através dessa normalidade falaciosa que assistimos o assédio moral da estudante, a educação da frieza, a violência, o abuso sexual e a tortura. Não queremos com isso criar uma noção dicotômica, entendemos que é preciso mais que isso para se analisar uma sociedade complexa como a nossa. Gostaríamos apenas de apontar para essa figura embutida no filme, uma vez que sabemos que ainda hoje é forte o olhar estigmatizador que paira sobre as práticas mais extremas da modificação do corpo. O filme mesmo reforça todos esses estigmas, como dissemos, ajuda pouco.

Seguindo com a análise, Mary abandona a universidade após ser estuprada, se torna uma body modfier de sucesso e ao mesmo tempo passa a se vingar de seu agressor. É no Dr. Grant que Mary vai testar uma série de procedimentos e vai inclusive utilizá-lo como parte de seu portfólio. Ela o vende como seu cliente hardcore.

52114526a99eb959-AMERICAN_MARY_Szenenbild_02(Procedimentos de body modification e suspensão corporal usada como forma de tortura)

Na internet e no meio body mods fictício, seu trabalho recebe a assinatura de Bloody Mary, afim de preservar sua real identidade. Suas habilidades atraem as irmãs gêmeas de Berlim, que são responsáveis pelo principal site de body modification do mundo. A dupla na intenção de selar a conexão que as une, pede para que os seus braços esquerdos sejam trocados (amputados de uma e implantado na outra), assim como pedem por implantes subdermais nas testas.

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1_e_The-Soska-Sisters-Jen-Sylvia-Soska-_American-Mary-e1351660655722(As gêmeas de Berlim)

Percebemos que houve uma boa pesquisa de campo para a realização do filme. Seja no uso dos termos dos procedimentos, seja com a participação de pessoas com os corpos modificados. O mais interessante dessa aparente pesquisa, é o filme reconhecer a importância da internet para a propagação dessas técnicas e cultura. Frequentemente se fala sobre essa questão no longa. Historicamente, apesar de usarem dados fantasias, essa colocação foi bastante fiel. Não nos esqueçamos do BMEzine.

Como já anunciado por Bach, o filme se fecha em tragédia. Mary passa a ser investigada por um detetive por conta do desaparecimento de seu antigo orientador de residência. Beatress desaparece, mas Mary recebe uma ligação dela. No telefonema a suposta Boop diz ter sido atacada e esfaqueada pelo marido de Ruby. Ele havia desaprovado as modificações corporais feitas na boneca humana e queria vingança. Desaprovação oriunda do machismo que fazia com que ele se sentisse dono do corpo da esposa. A conversa entre Mary e Beatress é interrompida pelo ataque do marido furioso. Mary consegue matá-lo, mas é ferida gravemente e morre de hemorragia. O seu corpo é encontrado no chão, com os braços abertos, em simulacro de crucificação, e um sorriso de satisfação na face sem vida. Mais uma vez a canção Ave Maria de Bach volta ao filme.

O filme termina deixando muito a desejar e agradando pouco. Isso porque reconhecendo a pesquisa que aparentemente houve para se fazê-lo, se torna inadmissível que se perpetue a ideia leviana de que as pessoas da comunidade da modificação do corpo sejam doentes e psicóticas. Se torna inadmissível que práticas sócio-culturais seculares recebam esse olhar e tratamento tão vago. Se torna inadmissível que essas práticas sejam completamente esvaziadas a ponto de caírem apenas no âmbito da tortura psicofísica e violência. Vários outros filmes, a maioria deles, já tiveram a infeliz ideia de fazer isso e nesse sentido o filme nem inova em nada. Faz repetição do mesmo e reproduz estigmas e preconceitos de forma bastante deliberada.
Os poucos discursos que se salvam, não são suficientes para mudar muita coisa e tão pouco conseguem salvar o resto.

É mais um filme que entra para a lista daqueles que nos chamam de malucos, marginais, perigosos e doentes. Que ainda perigosamente deve agradar algumas pessoas da comunidade body mods. E que não, não faz nenhum progresso significante até aqui.

Ave Maria!

Trailer do filme

Website oficial
http://twistedtwinsproductions.net/americanmary.htm

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2 thoughts on “American Mary”

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