Corpos inaptos, sociedade inóspita: práticas políticas e ideológicas de exclusão escolar

RESUMO
O artigo discute os desafios da educação inclusiva no Brasil de 2019, considerando os ataques que a educação – principalmente a – pública vem sofrendo, com a ascensão de um governo conservador e autoritário que tem como premissa a negação de uma sociedade diversa e plural. O trabalho busca refletir ainda sobre quais corpos podem existir com dignidade e humanidade e sobre quem e para quem estamos a falar quando discursamos sobre educação inclusiva.

Artigo apresentado por T. Angel como requisito parcial para obtenção do título de Especialista em Educação Inclusiva, pelo Centro Universitário das Faculdades Metropolitanas Unidas – FMU.

INTRODUÇÃO

É preciso estar atento e forte. Não temos tempo de temer a morte”
Caetano Veloso e Gilberto Gil, 1968

O Brasil tem graves e profundas crises com a educação pública. Segundo o Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA) de 2015, o Brasil ocupava a 63ª posição de 70 países que participaram da avaliação. Todos os problemas – que incluem o baixo investimento na área – impactam negativamente na construção e efetivação de uma educação com perspectiva inclusiva. É importante citar que em 2016 foi aprovada a PEC 241 (ou 55) que congelou por vinte anos os investimentos na educação. Para o filósofo Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da educação do governo Dilma a proposta vai inviabilizar o cumprimento da meta de universalizar o atendimento das crianças e adolescentes até 2020, como prevê o Plano Nacional de Educação[1].

Impactam ainda mais na efetivação de uma educação com perspectiva inclusiva a ascensão de um governo autoritário e ultraconservador que tem como premissa e campanha política e ideológica a demonização da pluralidade e diversidade humana, intolerância a divergência de pensamentos e que não demonstra muita simpatia pelo sistema democrático.

Discutiremos no presente artigo questões que rondam os desafios da educação inclusiva no Brasil de 2019, contextualizando sobre a atual conjuntura, tratando de quais corpos podem existir dentro do sistema vigente e, por fim, buscando entender para quem e para que serve a educação inclusiva.  

Contudo, o objetivo deste trabalho é menos o de trazer respostas prontas e fixas, mas sim o de colaborar com a reflexão crítica sobre os caminhos que estamos traçando.

CONJUNTURA DO BRASIL DE 2019

“Deixem de lado os judeus por um momento. Pensem noutra minoria, uma que… Que pode passar despercebida, se necessário. Existem minorias de todos os tipos, louras, por exemplo. Ou pessoas com sardas. Mas uma minoria só é reconhecida como tal quando constitui ameaça à maioria. Ameaça real ou imaginária. E aí reside o medo. E se essa minoria é de algum modo invisível… O medo é ainda maior. E esse medo é a razão pela qual as minorias são perseguidas. Portanto, há sempre uma razão. A razão é o medo. Mas, minorias são apenas pessoas. Pessoas como nós.”
A single man (EUA, 2009)

“A crise da educação no Brasil, não é uma crise, é um projeto.”
Darcy Ribeiro

Antes de nos enveredarmos sobre a conjuntura do Brasil de 2019, consideramos importante demarcar de quem e de onde parte a construção do presente texto. Assim, de agora em diante, trabalharemos em primeira pessoa na elaboração dessa fala. Trabalhando aqui na perspectiva do lugar de fala[2], no sentido não apenas de escrever ou dizer palavras, mas de poder existir (RIBEIRO, 2017, p. 64).

Eu sou uma pessoa branca, pobre, que nasceu e que ainda vive na periferia da grande São Paulo. Sou uma pessoa não binária, não heterossexual, ateia, vegana e freak[3]. Trabalho com educação pública pelo Estado de São Paulo lecionando história, também na periferia onde vivo. Atuo no campo da arte da performance e ativismo pelos direitos humanos e dos animais. Pontuar todos esses marcadores sociais e identitários que há tempos reconheço e carrego em mim, na atual conjuntura, é ao mesmo tempo caminhar com um grande alvo marcado em minha testa. E as linhas abaixo explicarão o que isso quer dizer.

O dia 1º de janeiro de 2019 no Brasil foi marcado pela posse do presidente eleito Jair Messias Bolsonaro (PSL). A cerimônia foi marcada pelo discurso em libras da primeira-dama Michelle Bolsonaro[4]. Tal atitude encantou a legião de apoiadores e admiradores do presidente eleito e acendeu um grande debate sobre inclusão. Em sua fala, Michelle colocou:

“Gostaria de modo muito especial de dirigir-me à comunidade surda, às pessoas com deficiência e a todos aqueles que se sentem esquecidos: vocês serão valorizados e terão seus direitos respeitados. Tenho esse chamado no meu coração e desejo contribuir na promoção do ser humano”

Estaria o governo, em cerimônia de posse, dando sinais de uma real preocupação em construir um país mais inclusivo? Um país que de fato trabalhe para todas as pessoas, que sincera e efetivamente contribua com a promoção do ser humano? Não! Definitivamente não é o que os dias seguintes nos mostraram.

Uma forte marca do presidente eleito no Brasil é justamente o contrário da inclusão. Quiçá a exclusão em seu nível máximo seja sua forte característica, fomentando a necropolítica no Brasil. Segundo o filósofo camaronês Achille Mbembe, por necropolítica temos “as formas contemporâneas que subjugam a vida ao poder da morte”. Ainda de acordo com o pensador:

“(…) propus a noção de necropolítica e necropoder para dar conta das várias maneiras pelas quais, em nosso mundo contemporâneo, as armas de fogo são dispostas com o objetivo de provocar a destruição máxima de pessoas e criar “mundos de morte”, formas únicas e novas de existência social, nas quais vastas populações são submetidas a condições de vida que lhes conferem o estatuto de “mortos vivos”.” (MBEMBE, p. 71, 2018)

Jair Bolsonaro ao longo de sua carreira política e pública demonstrou incontáveis vezes pouco apreço pela democracia, tanto, que em 2019 pediu a comemoração do 31 de março de 1964, data que marca o golpe militar no Brasil. Antes disso celebrava a data sozinho, entre faixas, fogos e vídeos para as redes sociais. Contando ainda as homenagens que presta à ditadores e torturadores latino-americanos, como o brasileiro Carlos Alberto Brilhante Ustra (1932-2015) e o paraguaio Alfredo Stroessner (1912-1989). Incontáveis vezes também se mostrou contrário a laicidade do Estado, afirmando que o Brasil é um Estado Cristão, inclusive, o slogan de sua campanha presidencial era composto por “Deus acima de tudo. Brasil acima de todos”.

Em um encontro na Paraíba em 2017, Jair Bolsonaro disse que “as minorias têm que se curvar para as maiorias”. Somado de falas racistas, misóginas, xenófobas e LGBTfóbicas. Essas informações dão a tônica do Brasil de 2019 e, que coloca a vida de pessoas como eu, em constante estado de risco de morte.

No entanto, se no dia 1º de janeiro de 2019 tivemos um discurso em libras pela mais nova primeira-dama do Brasil, no 2º dia tivemos a extinção da secretaria do Ministério da Educação responsável pela diversidade, inclusão social e pela educação de surdos, decretada pelo então ministro da Educação do novo governo, Ricardo Vélez Rodríguez[5].  A Secretária da Diversidade e Inclusão – Secadi havia sido criada em 2004 com o objetivo de incluir grupos historicamente excluídos do processo de escolarização. Se a primeira-dama falava em seu discurso sobre “pessoas que se sentem esquecidas” (sic), é importante frisar que algumas populações é que foram historicamente esquecidas, silenciadas, tornadas invisíveis e/ou exterminadas. Não é sobre se sentir, mas sobre política e ideologicamente esquecer, excluir e exterminar. É sobre o necropoder manifestado.

O que estamos assistindo desde o começo do ano é o Ministério da Educação guiado pelo ministro Ricardo Vélez Rodríguez em uma grave e profunda crise ética e técnica. Em um constante balança mas não cai, vimos correr editais de livros didáticos sem a necessidade de indicação bibliográfica e sem a promoção de ações de não violência contra as mulheres, entrando em atrito com a própria Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006) sancionada pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que em seu artigo 8ª coloca que:

“V – a promoção e a realização de campanhas educativas de prevenção da violência doméstica e familiar contra a mulher, voltadas ao público escolar e à sociedade em geral, e a difusão desta Lei e dos instrumentos de proteção aos direitos humanos das mulheres;

IX – o destaque, nos currículos escolares de todos os níveis de ensino, para os conteúdos relativos aos direitos humanos, à equidade de gênero e de raça ou etnia e ao problema da violência doméstica e familiar contra a mulher. 

VIII – a promoção de programas educacionais que disseminem valores éticos de irrestrito respeito à dignidade da pessoa humana com a perspectiva de gênero e de raça ou etnia;”

O primeiro trimestre de 2019 foi assustador. Ouvimos do ministro da educação em janeiro que “universidade não é para todos”. Em fevereiro Vélez enviou cartas aos diretores das escolas pedindo filmagens de estudantes cantando o hino nacional do Brasil acompanhado da leitura do slogan da campanha do atual presidente, que como já mencionei, fere o princípio da laicidade do Estado. Em março a crise no ministério se agravou, sendo marcado por demissões e exonerações da pasta.

Em 14 de março foi anunciada para assumir a Secretaria Executiva do MEC a educadora evangélica Iolene Lima que defende o ensino baseado na palavra de Deus. Em um vídeo de 2013, durante entrevista ao canal de TV evangélico Feliz Cidade, ela dizia defender que:

“Uma educação baseada em princípios é uma educação baseada na palavra de Deus. […] O aluno vai aprender que o autor da História é Deus, o realizador da Geografia é Deus. Deus fez as planícies, o relevo, o clima. O primeiro matemático foi Deus.”

Uma semana depois de Iolene Lima ter sido anunciada para o cargo, recebeu sua demissão. Ela saiu, a crise no Ministério da Educação ficou. Com especulações que o próprio Ministro Vélez estaria com os dias contados. E de fato estava… No dia 08 de abril de 2019 foi anunciada a sua demissão. Ricardo Vélez saiu, a crise no Ministério da Educação ficou. Instalada como um vírus resistente e que tem adoecido – ainda mais – o sistema educacional brasileiro.

Eu, enquanto profissional da educação, assisto o desmonte e sucateamento massivo da educação pública – do ensino básico ao superior – com profunda aflição. O atual governo no presente momento escolheu como grande inimigo a educação. Trata também como inimigos professores e professoras. A distopia[6] está instalada. Não é uma crise, é o projeto, como já nos alertava Darcy Ribeiro em 1977 e que hoje, se faz mais atual do que nunca antes. Infelizmente.

INAPTOS: QUAIS CORPOS PODEM EXISTIR?

Adj. Que não possui nem demonstra capacidade e/ou aptidão. Que não é capaz; sem habilidade.
Dicionário Informal

Contextualização realizada, agora passaremos a entender quais corpos podem existir dentro dessa sociedade inóspita em feroz construção. Sublinhar a ascensão da nefanda inospitalidade de 2019, não quer dizer que antes disso, vivíamos em pleno potencial acessível, inclusivo e acolhedor. Pessoas dissidentes, consideradas abjetas, anormais, monstruosas, defeituosas, doentes, pervertidas – como eu sou – sabemos que nunca tivemos a chance de experimentar viver sem o medo constante de morrer. Morremos. Quando não sou eu a vítima fatal da vez, o pensamento que se sobressai é: serei eu a próxima? A angústia cala a resposta no peito, mas eu sei que nossos corpos tombam aos montes aos chãos com o necropoder “embaralhando as fronteiras entre resistência e suicídio, sacrífico e redenção, mártir e liberdade” (MBEMBE, 2018, p.71).

Pensando agora a questão da inclusão no ambiente escolar, se consideramos que professoras e professoras também fazem parte da construção de uma escola com perspectiva inclusiva, precisamos refletir urgentemente sobre os desafios que essa classe trabalhadora tem enfrentado antes e durante o ano de 2019. Dentre todos os desafios, o próprio acesso e permanência enquanto profissional da educação. Usaremos como exemplo aqui, a estrutura do Estado de São Paulo.

Em 2013 a Secretária de Estado da Educação de São Paulo divulgou edital pela Fundação Getúlio Vargas (FVG) de concurso público para 59 mil vagas de professores em todo o Estado[7]. Na época, o concurso com taxa de inscrição de R$29,00 (vinte e nove reais), registrou recorde de inscrições com 322,7 mil pessoas participando. O concurso que se configurava declaradamente como parte da propaganda do ex-governador Geraldo Alckmin (PSDB), foi chamado – e tem sido até os dias de hoje – como o maior concurso da história do magistério paulista.

Porém, o maior concurso da história do magistério paulista também reafirmava e reforçava processos de exclusão de docentes. Eu participei desse processo e, por conta do meu transplante de córnea me seguraram até onde conseguiram. A minha sensação é que a insistência do sistema, tal qual se apresentava, era para que eu desistisse do processo. Tive que ter alguns inaptos carimbados e passar por juntas médicas para que depois de meses, validassem a minha capacitação. O meu caso não é isolado e é disso que vamos tratar.

Estamos falando de um concurso público excludente no sentido econômico. Por exemplo, uma pessoa que buscou a isenção de taxa de R$29,00 (vinte e nove reais), por não ter condição financeira para arcar com esse valor, foi aprovada no concurso. Essa pessoa depois de ser nomeada, precisava fazer inúmeros exames médicos e pagar por todos eles para poder chegar até a perícia. Se a pessoa não tinha condição de pagar R$29,00 (vinte e nove reais) para realizar sua inscrição, qual garantia ela teria de ter ou conseguir no mínimo R$600,00 (seiscentos reais) para gastar com os exames médicos solicitados? Pois bem. Algumas pessoas já foram excluídas aqui.

O mesmo concurso público – e não somente este em específico – institucionalizou a gordofobia[8]. Durante uma das minhas perícias, estive do lado de uma mulher gorda que me confessou estar vivendo uma dieta violenta para ser aprovada no processo. Pessoas gordas são tidas como inaptas ou são obrigadas a passar por um processo violento e desumanizador de emagrecimento para conseguir passar pela perícia médica.

O Departamento de Perícias Médicas do Estado de São Paulo informou através de nota que é “obrigação da administração pública zelar pelo interesse coletivo e provisionar futuros custos que caberia ao Estado arcar, como licenças médicas e afastamentos”, ressaltando que isso não significa que o candidato não possa exercer a profissão. Em relação à obesidade, o Departamento justifica que “a obesidade mórbida (IMC maior que 40/classificação OMS), é considerada doença grave e requer avaliação mais detalhada. Com tal classificação de doença grave, há um choque junto ao artigo 47, inciso 7 do referido Estatuto, que determina que o candidato deve ‘gozar de boa saúde”.

De 11.858 docentes aprovados e que passaram pela avaliação de saúde, 155 foram considerados inaptos nas perícias, sendo 39 (25%) deles recusados por obesidade[9]. O DPME trabalha com uma das premissas básicas da gordofobia, isto é, postular que corpos gordos são corpos doentes ou mais propensos – que corpos magros – a doenças e o grau de infelicidade desse pensamento beira o absurdo da violência. Falo de violência cruel por causar sofrimento psicológico, físico e moral, pois de uma maneira ardilosa – e amparada na lei – colabora com distúrbios alimentares que podem causar doenças sérias e matar, colabora com a destruição da autoestima de pessoas, colabora inclusive com a ideação suicida dessa população. Quando não, faz de maneira forçosa que pessoas gordas recorram para cirurgias bariátricas, a fim de que possam ser aceitáveis para o sistema, depois de emagrecerem. Isso é desumanizador e beira a eugenia.

É um concurso público capacitista. Embora por lei sejam obrigados a conceder 5% das vagas para pessoas com deficiência, barraram diversas pessoas por conta de seus corpos[10], por – segundo as regras do concurso – não estarem capacitados e aptos para exercer a profissão do magistério.

Capacitismo[11] é a discriminação e o preconceito social contra pessoas com base numa determinada concepção padrão do corpo, um padrão corporal, que o coloca um determinado corpo como perfeito, típico da espécie humana. Essa concepção presente no social que tende a pensar as pessoas com deficiência como não iguais, menos aptas ou não capazes para gerir a próprias vidas, sem autonomia, dependentes, desamparadas, assexuadas, condenadas a uma vida eterna e economicamente dependentes, não aceitáveis em suas imagens sociais, menos humanas.

E o mais contraditório é que para o trabalho com contratos temporários com o mesmo Estado, que sublinha o sistema de exclusão e segregação, esses profissionais ainda têm serventia. O sistema tem sucessivamente falhado, não é de agora.  O que muda é que agora toda violência contra a educação é explícita.

O inapto que carimbam repetidamente nas testas dessa classe trabalhadora – e não só dela obviamente – é como se dissessem que essas pessoas não têm mais utilidade. Um sonoro e intenso carimbo no centro da testa, como uma grande porrada na cabeça. Você não serve mais, próximo… E o próximo, e o próximo, e o próximo. Sistema fabril de produção de corpos descartáveis. Até que não sobre ninguém.

O inapto quer dizer que você não serve mais, que você é imprestável, que seu corpo não tem mais validade ou serventia. Joga fora no lixo. O inapto dentro de um esquema biopolítico[12] é a afirmação de que para o sistema você falhou, fracassou. Descarta. O inapto dentro do sistema capitalista é a afirmação de que seu corpo não serve mais para produzir e grita no seu ouvido: – Há uma fila lá fora esperando justamente por isso. O exército de reserva marcha sobre sua carniça.

Tenho como hipótese que um dos propósitos do concurso foi também o de forçar a situação ao ponto de que professoras e professores desistissem e que a fila do exército de reserva pudesse andar uma outra casa nesse tabuleiro trágico e esquizofrênico de exclusão.  Olhe para trás e veja quantos rostos estão a esperar, como eu estive antes. As pessoas estão desistindo de verdade, algumas do concurso e outras de si. Mas quem se importa?

O concurso que se apresentou como sendo abrangente e acessível foi uma miragem no deserto do sistema capitalista que é per si excludente.  A realidade foi o eco que repete o som de que alguns corpos, definitivamente, não podem existir.

PROJETOS DE LEIS, EXCLUSÕES, FAKENEWS

“Faz parte igualmente do pensar certo a rejeição mais decidida a qualquer forma de discriminação. A prática preconceituosa de raça, de classe, de gênero ofende a substantividade do ser humano e nega radicalmente a democracia.”
Paulo Freire

Ideologia de gênero[13], kit gay[14], mamadeira erótica[15] e escola sem partido[16] são algumas pautas que tem virado e revirado a educação no Brasil, colaborado com a eleição de políticos e fomentado a perseguição de professoras e professores. São pautas que sobretudo fomentam a exclusão nas escolas e sociedade e nos colocam diante de um governo com um discurso conservador e moralista, mas que tem atuado de forma promiscua e cruel para lidar com temas que historicamente afetam o Brasil, como a desigualdade social, a misoginia, o racismo e a LGBTQfobia.

Paulo Freire dizia que todos somos orientados por uma base ideológica. E a grande questão que o professor nos deixou para pensar foi se a nossa ideologia é inclusiva ou excludente. Na obra ‘Educação e Mudança’ o professor Paulo Freire dizia ainda:

A neutralidade frente ao mundo, frente ao histórico, frente aos valores, reflete apenas o medo que se tem de revelar o compromisso. Este medo quase sempre resulta de um ‘compromisso’ contra os homens, contra sua humanização, por parte dos que se dizem neutros. Estão comprometidos consigo mesmos, com seus interesses ou com os interesses dos grupos aos quais pertencem. E como este não é um compromisso verdadeiro, assumem a neutralidade impossível.” (FREIRE, p. 23, 2018)

Ideologia de gênero, escola sem partido, mamadeira erótica e kit gay são na realidade ferramentas violentas criadas e usadas para desumanizar e exterminar a população LGBTQI+. São ataques declarados e explícitos contra uma população, bombardeios que brotam pela indignação e ressentimento dos grupos reacionários e ultraconservadores com o fato de que mulheres lésbicas, homens gays, pessoas bissexuais, trans* e intersexuais finalmente começaram a ganhar o direito e a dignidade de serem tratadas e tratados como seres humanos.

Toda vez que essas vozes fascistas – e assim o são porque são violentas e autoritárias – gritam para silenciar populações que historicamente carregam a privação e negação dos direitos humanos básicos, lembremos que na década de 70 do século passado nos Estados Unidos da América professores abertamente gays e professoras abertamente lésbicas eram demitidas por serem consideradas recrutadores e abusadores de crianças[17]. Não nos esqueçamos e, principalmente, não podemos repetir os velhos erros de tempos que ficaram para trás.

Hoje o atual governo fomenta a perseguição de professoras e professores. Não há ponderação. A cada semana é um corpo que se joga na fogueira. Quanto outros corpos serão necessários queimar?

EDUCAÇÃO INCLUSIVA PARA QUEM?

“Sus padres gritan que los grupos LGBT jamás deben entrar en los colegios, pero esos niños saben que son ellos mismos los portadores de la bala LGBT. En la noche, como cuando yo era niñx, se van a la cama con la vergüenza de ser los únicos en saber que son la decepción de sus padres, y se acuestan con el temor de que sus padres los abandonen si se enteran, o incluso prefieren que mueran. Y tal vez sueñan, como yo antes que ellxs, que se fugan a un país extranjero, en el que los niñxs que portan la bala son bienvenidos. Y yo quisiera decir a esos niños: la vida es maravillosa, nosotros los esperamos, aquí, somos numerosos, todos caímos bajo la ráfaga, somos los amantes con los pechos abiertos. No están solos.”
Paul Preciado[18]

Toda vez que ouço falar sobre educação inclusiva, fico a me perguntar, inclusiva para quem? A pergunta surge de um profundo incomodo e mau estar. Porque a maioria das pessoas não se deram conta de quais grupos estão sendo excluídos dos processos que rondam o acesso e permanência na educação. Alguns grupos são de tamanha vulnerabilidade, que as suas ausências não são – nem se quer – sentidas ou percebidas. E se não enxergamos o problema, não temos como tratá-lo.

Falar de educação inclusiva é ao mesmo tempo falar de uma educação que seja e esteja acessível para todas as pessoas – sem exceções – principalmente aquelas que historicamente e por muito tempo foram privadas do direito humano básico e fundamental de estudar. Pessoas com deficiência, pessoas negras, indígenas, mulheres, pessoas lésbicas, gays, bissexuais e trans* são alguns grupos que historicamente sofreram com os processos de exclusão social e segregação espacial que impactou diretamente no acesso e permanência na educação.

Quando falo de educação inclusiva, estou falando não apenas de estudantes, mas de toda comunidade escolar, como explanei acima. É preciso pensar no corpo docente, funcionárias, equipe gestora, famílias e, obviamente, que o corpo discente. Uma escola comum na perspectiva da educação inclusiva, assim o deve ser de cima para baixo, de um lado para o outro, ou seja, em sua totalidade. Ninguém deveria fica de fora ou ter a segurança de sua permanência ameaçada.

No Brasil de 2019, com base na conjuntura apresentada, temos um cenário reacionário e conservador e que escolheu – não inocentemente – a educação como alvo principal de ataque e controle. No entanto, tenhamos claro que ambientes escolares inclusivos rompem com paradigmas conservadores construídos historicamente e “neles não se elege uma identidade como norma privilegiada em relação às demais” (ROPOLI; MANTOAN; SANTOS; MACHADO, 2010, p. 7). O simples fato de propor que ninguém fique de fora do processo escolar já é em si, um grande ato de resistência em um governo que funciona pela lógica da necropolítica, isto é, da exclusão máxima decidindo quais corpos devem morrer.  

Então, se entendemos que a educação é um direito de todas as pessoas, o direito à diferença também o é, nesse sentido, precisamos romper com a lógica do senso comum de que somos todos iguais. Nós não somos, nunca fomos e nunca seremos todos iguais e essa premissa é fundamental para que se efetive de fato uma educação inclusiva.

Uma escola inclusiva deve funcionar compreendendo com lucidez e sensatez a história do Brasil e, especificamente, a história da educação brasileira. Entendendo essa parte, pode-se criar mecanismos e estratégias eficazes de combates à exclusão, inclusive a exclusão em seu nível máximo que é o extermínio de grupos de pessoas, tantas vezes ditas acima. Entendendo esta parte, a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948) e a Constituição do Brasil (1988) deixam de ser documentos que para muitos são apenas pedaços rebuscados de papel e se tornam práticas e políticas pedagógicas cotidianas de enfrentamentos de políticas e ideologias que fomentam a exclusão escolar.

Temos hoje um importante aparato de leis, estatutos e declarações que postulam sobre a construção de uma educação com perspectiva inclusiva, resta agora esperar o levante da multidão que irá efetivar o que está no papel. Utilizar essas ferramentas para que uma transformação poderosa possa acontecer.  E só acontecerá se as pessoas que historicamente estivaram fora do processo, estejam presentes, com vida e ativamente trabalhando para sua realização.

CONCLUSÃO

Escrevo de dentro do olho do furacão. O cenário distópico e desolador não apontam perspectivas positivas e possíveis de melhorias no campo da educação inclusiva. Ao contrário, o seu avesso. O sucateamento do próprio Ministério da Educação nos 100 primeiros dias do governo vigente é asfixiante. Sem propostas. Enquanto escrevo essas linhas não há um projeto anunciado para educação brasileira que não seja o seu desmanche e a sua demolição. Não há horizonte.

A presidente-executiva Priscila Cruz do movimento Todos Pela Educação disse em entrevista para Valor Econômico que a educação básica em 2020 pode entrar em colapso[19]. Entre militares, pastores evangélicos e discípulos de Olavo de Carvalho a pasta vai sendo dilacerada e o Ministério da Educação, coitado, amarga uma de suas piores fases desde sua fundação em 1930.

Todavia, como fase que é, passará, mas as sequelas desse descaso irresponsável serão sentidas por muitas próximas gerações. Estamos caminhando com passos largos ao passado. Podemos voltar a viver com as taxas altas do analfabetismo, com as universidades reservadas para as elites e, com isso, limitando todo o nosso potencial humano no campo da pesquisa científica, fundamental para o desenvolvimento e progresso de qualquer país. Sufocando assim o enfrentamento da pornográfica desigualdade social que sangra a história brasileira e, por outro lado, fomentando a violência.

Enquanto finalizo essas linhas, como quem anda em corda bamba, receio ainda pelos direitos trabalhistas e direitos humanos que foram duramente conquistados e estão presentes inclusive na Constituição de 1988. Tudo está sendo desintegrado no Brasil e agora a censura, o racismo, a tortura e as desigualdades de gênero caminham entre nós mais fortes do que nunca. A autoridade máxima do país legitima essa narrativa do ódio, da segregação e da morte.  

Se há uma guerra interna no Ministério da Educação, e há, os perdedores já somos todos e todas nós. E como já cantavam os Racionais MCs, “humanidade é má e até Jesus chorou”.

REFERÊNCIAS

FREIRE, Paulo. Pedagogia da esperança: um reencontro com a pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 1991.

FREIRE, Paulo. Educação e Mudança. São Paulo/Rio de Janeiro: Paz & Terra, 2018, 38ª edição.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1978.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 Edições, 2018, 2ª edição.

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Minas Gerais: Grupo Editorial Letramento – Justificando, 2017.

ROPOLI, Edilene Aparecida [et. al.]. A escola comum inclusiva. Brasília, DF: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Especial, Universidade Federal do Ceará, 2010. 48p. (Coleção A Educação Especial na Perspectiva da Inclusão Escolar)


[1] DEPUTADOS CONGELAM VERBAS DA SAÚDE E DA EDUCAÇÃO POR 20 ANOS. Disponível em: <https://www.cartacapital.com.br/politica/deputados-congelam-verba-da-saude-e-educacao-por-20-anos/>. Acesso em: 10 de abril de 2019.

[2] Segundo o conceito trabalhado em ‘O que é lugar de fala?’ pela filósofa Djamila Ribeiro, “pensamos o lugar de falar como refutar a história tradicional e a hierarquização de saberes consequente da hierarquia social”.

[3] O termo freak (do inglês, aberração) passou por uma ressignificação e hoje representa uma construção de identidade dissidente, conectada com as modificações corporais e diferentes usos do corpo. Muito similar com o processo que envolve a ressignificação do termo queer.  


[4] A imprensa repercutiu amplamente o discurso. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2019/01/01/politica/1546361496_407537.html>. Acesso em: 01 de abril de 2019.

[5] PARADOXO: GOVERNO TEM DISCURSO EM LIBRAS MAS EXTINGUE SECRETARIA QUE CUIDAVA DA EDUCAÇÃO DE SURDOS. HYPENESS. Disponível em: <https://www.hypeness.com.br/2019/01/paradoxo-governo-tem-discurso-em-libras-mas-extingue-secretaria-que-cuidava-da-educacao-de-surdos/>. Acesso em: 01 de abril de 2019.

[6] Distopia como a antítese da utopia. Geralmente caracteriza-se distopias pelo totalitarismo, autoritarismo e controle da sociedade. O historiador Luiz Marques explica ainda que a distopia representa “uma ameaça em estado latente, é dilatado ao ponto de representar uma ameaça mortal para esta sociedade”. Disponível em: <https://www.unicamp.br/unicamp/ju/noticias/2018/08/08/sobre-distopias-autoengano-e-perspectiva-de-um-futuro-fracassado>. Acesso em: 04 de abril de 2019.

[7] EDUCAÇÃO DE SP LANÇA EDITAL PARA 59 MIL VAGAS DE PROFESSORES. Disponível em: <http://g1.globo.com/concursos-e-emprego/noticia/2013/09/educacao-de-sp-lanca-edital-para-9-mil-vagas-de-professores.html>. Acesso em: 04 de abril de 2019.

[8] A gordofobia é um estigma social que colabora com o tratamento de modo pejorativo, discriminatório e preconceituoso com as pessoas gordas. Pesquisa encomendada pela Skol Diálogos e realizada pelo Ibope em setembro de 2017, aponta que a gordofobia é presente na rotina de 92% dos brasileiros. No entanto, somente 10% de quem assume algum tipo de preconceito contra pessoas gordas assumiram que são gordofóbicos.  

[9] Dados oferecidos pelo DPME para Folha de São Paulo. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2014/05/1455960-pericia-barra-docente-obeso-em-concurso.shtml>. Acesso em: 04 de abril de 2019

[10] Reprovação nas perícias de professoras e professores ingressantes no Estado de São Paulo foi pauta da imprensa. Disponível em: < http://www.esquerdadiario.com.br/DENUNCIA-Reprovacao-nas-pericias-e-adiamento-das-posses-dos-professores-ingressantes-em-Sao-Paulo>. Acesso em: 04 de abril de 2019.

[11] CAPACITISMO: discriminação das pessoas com deficiência. Disponível em: < http://www.revistacapitolina.com.br/capacitismo-discriminacao-das-pessoas-com-deficiencia/>. Acesso em: 04 de Maio de 2019.   

[12] Biopolítica é o termo usado por Michel Foucault para designar a forma na qual o poder tende a se modificar na virada do século XIX para o XX. A biopolítica, segundo o filósofo, é a prática de biopoderes locais. Nesse sentido, o biopoder é utilizado na regulação do corpo, o que abarca o controle da vida. A vida faz parte do campo do poder (FOUCAULT, 1978, p. 277-293).  

[13] “Se chama erroneamente de ‘ideologia de gênero’ qualquer iniciativa que busque debater questões de ordem de gênero e orientação sexual em escolas, como iniciativas que visam combater as discriminações de gênero ou orientar e conscientizar sobre educação sexual”, explica Andressa Pellanda, coordenadora de políticas educacionais da Campanha Nacional Pelo Direito à Educação. Disponível em: <https://azmina.com.br/reportagens/ideologia-de-genero-entenda-o-assunto/>. Acesso em: 10 de abril de 2019.

[14] Jair Messias Bolsonaro, presidente do Brasil, é uma das pessoas que defende que tenha existido um kit gay no Brasil. A falácia foi parte de sua campanha para presidência. Contestada pelo Tribunal Superior Eleitoral. Disponível em: <https://g1.globo.com/fato-ou-fake/noticia/2018/10/16/e-fake-que-haddad-criou-kit-gay-para-criancas-de-seis-anos.ghtml>. Acesso em: 10 de abril de 2019.

[15] Apoiadores de Bolsonaro espalharam a Fake News da mamadeira erótica de Fernando Haddad (PT). O vídeo dizia que o PT e o Haddad distribuíram o objeto em creches ao redor do país. O Tribunal Superior Eleitoral precisou intervir. Disponível em: <https://www.pragmatismopolitico.com.br/2018/10/mamadeira-erotica-de-haddad-fake-news.html>. Acesso em: 10 de abril de 2019.

[16] Movimento criado em 2004 por grupos conservadores no Brasil e acolhido por personalidades e políticos da direita e da extrema-direita, que inclui o próprio presidente Bolsonaro. Esses grupos afirmam que existe uma “doutrinação ideológica” nas escolas e combatem fortemente a discussão sobre gênero.

[17] Diversos movimentos norte-americanos perseguiam profissionais da educação que se declaravam abertamente LGBT+ e mesmo as pessoas que defendiam a comunidade. Chamada de Iniciativa Briggs, a Proposição 6 da Califórnia foi uma iniciativa patrocinada por John Briggs, um legislador estadual do Condado de Orange e que buscava banir das escolas públicas professores LGBT+. Embora a iniciativa tenha fracassado, a perseguição foi dura e violenta. Disponível em: <https://web.archive.org/web/20060818145437/http://library.uchastings.edu/ballot_pdf/1978g.pdf>. Acesso em: 10 de Abril de 2019.

[18] Publicado no Liberátion em 14 de Fevereiro de 2014, com o título  ¿Quién defiende al niño queer?. Disponível em: <https://www.liberation.fr/debats/2014/02/14/nous-sommes-partout_980296>. Acesso em: 03 de Abril de 2019.

[19] MEC TEM SIDO INCAPAZ DE TOCAR POLÍTICAS PÚBLICAS. Disponível em: <https://www.valor.com.br/brasil/6198771/mec-tem-sido-incapaz-de-tocar-politicas-publicas>. Acesso em: 10 de Abril de 2019.